terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Consumo, logo existo

AUTOR: Jorge MAJFUD

Traduzido por Sylvia Bojunga
Dinheiro, dinheiro, dinheiro
Uma queda no consumo é a pior notícia dos últimos meses de 2008 nos Estados Unidos, México, Europa, Rússia, Japão, Indonésia, China e na Cochinchina. Os presidentes de todo o mundo, de todas as cores e de todas as ideologias em consumo, tratam desesperadamente de confirmar a fé dos consumidores na Economia, para que voltem a consumir mais e não se espalhe o pânico de uma catástrofe de consumidores que não consomem. Europa, Japão e Estados Unidos já injetaram dinheiro nos mercados para que os consumidores consumam. Quase ninguém fala dos problemas da produção e sim dos problemas do consumo. Se antes a poupança era a base da fortuna agora a obrigação moral é o gasto, porque ele é a base da reativação.
Quase um ano atrás, o governo norte-americano havia enviado suculentos cheques a cada um de seus consumidores para que os investissem em consumo, mas a algum ocorreu a má idéia de economizá-lo, ou preferiu pagar uma ou outra dívida. Até os programas de auditório — que são os principais programas de educação popular—, como El Gordo y la Flaca de Miami parecem ter transformado em causa heróica a obrigação de consumir para impulsionar o desenvolvimento, de modo que ir às compras passou a ser um valente ato de altruísmo. Uma vez mais os pobres e famintos do mundo têm mais motivos para agradecer aos ricos esbanjadores.
Há uns quatro anos eu disse a um amigo brasileiro, que defendia o hábito das pessoas nos Estados Unidos de comprar e jogar fora sem necessidade, que um progresso que se baseie nesse consumo excessivo não me convencia em sua lógica interna. Meu amigo respondeu que se não fosse por tudo o que se descarta e desperdiça nos Estados Unidos não haveria tantas indústrias na África e na América Latina, nem países socialistas como a Venezuela venderiam tanto petróleo a preços tão altos.
Até certo ponto ele tinha razão, mas, visto em sua globalidade, afirmar que cada vez que alguém joga no lixo uma meia pizza, um televisor ou uma cadeira fora de moda, na realidade está fazendo um favor a um pobre em alguma parte do mundo é uma lógica que falha por algum lado. Até certo ponto é compreensível que se os yanquees não consomem o lixo que a China produz, os outros países produtores de matérias-primas, países em vias de consumo, perdem mais mercados, começando pelo mercado do petróleo. Mas, assim como entre os viciados, as injeções de dinheiro doce se repetem com menor efeito a cada vez. A longo prazo, basear o progresso no mero consumo continua sendo um absurdo que terá de mudar algum dia. Um absurdo do qual todos fazemos parte, de uma forma ou de outra.
Agora, como é possível manter viva esta superstição por tanto tempo?
José Marafona, Construtor de Imperios
Mente-me muito lentamente
Apesar de tudo, a narrativa macroeconômica tem sido incrivelmente sincera: o objetivo dos consumidores —antes cidadãos, gente, pessoas— é consumir. Ou as crises tornam sinceros os seus atores ou o trabalho sujo continuará sendo feito pela narratura social. Vejamos.
Um comercial da Best Buy mostra uma jovem funcionária falando em spanglish. A jovem conta como recentemente atendeu a dois meninos que queriam dar um presente à sua mãe e só tinham algumas moedas. Ela os ajudou a conseguir um modesto disco de música para que eles tivessem algo a presentear. Ao final, a jovem conclui com uma lição de moral ao estilo dos Exemplos do Conde Lucanor no século XIV: “não importa o valor do presente mas que este seja dado com o coração”. Em outro comercial quase simultâneo, a Wal-Mart aconselha os consumidores que economizem dinheiro em tempos de crise econômica. Claro, para economizar, devem consumir na Wal-Mart.
O primeiro sentido e objetivo da empresa e do comercial —os benefícios econômicos produzidos pela venda, grande ou modesta— está oculto atrás de uma narração que apela para a emoção e de um discurso tradicional e politicamente correto. O explícito “não importa o valor monetário mas sim o valor emocional” substitui o verdadeiro sentido da narração, que é o contrário implícito: “não nos importa o amor, mas que as crianças compraram, consumiram, e por trás deles e em seu próprio futuro está a continuidade desses ganhos”. Agora, se a lógica do benefício não é ruim nem para um socialista que vive em um mundo capitalista, por que ocultá-la?
Talvez porque só se possa ter uma fé cega naquilo que não se vê. A narração da ideologia hegemônica torna invisível seu objetivo central apresentando uma visualização contrária dessa narração, quer dizer, criando a máscara da história real. Da mesma forma, o mundo secular do capitalismo se mascara com a narração religiosa que predomina em sociedades como os Estados Unidos.
A narratura social —narrativa que sutura as contradições sociais— dissocia a realidade do discurso, colocando o discurso acima de uma determinada realidade que cobre como um manto. Confia-se que o público não atenderá a essa realidade mas sim ao discurso. O discurso, ao ser politicamente correto e repetitivo, é ingerido como ideoléxico, como o espaço moral compartilhado por diferentes grupos sociais, políticos, religiosos, raciais, de gerações, and so on.
Há alguns anos, nos Estados Unidos existiam slogans de clínicas privadas que pregavam “Your health is our passion (Sua saúde é nossa paixão)”. Talvez porque este slogan não era de todo verossímil, para re-suturar esta contradição os comerciais começaram a incluir cápsulas dialéticas do tipo: “your health is our business, but it is also our passion (Sua saúde é nosso negócio, mas também é nossa paixão)”. Enquanto isso, para que uma pessoa consiga obter um seguro de saúde, primeiro deve demonstrar que não está doente. É lógico, sob a perspectiva do mercado: se as companhias seguradoras segurassem enfermos, perderiam dinheiro. E qual é o objetivo de uma companhia que vende direitos de saúde? A saúde? Sim, a saúde da empresa. A seguradora se assegura que o segurado não necessita de um seguro antes de vendê-lo. Se uma companhia de seguros de saúde suspeita que o candidato pode adoecer seriamente nos próximos anos, lhe negará a apólice. Está em seu direito de proteger seus benefícios. Se, de qualquer forma, você quiser comprar um plano de saúde, deverá ir a uma clínica e gastar suas economias para que um médico assegure à seguradora que você está perfeitamente são. Se conseguir fazer isso, terá um serviço de primeira: a melhor medicina com a melhor tecnologia; e se for hospitalizado, terá o melhor menu nas salas mais amplas e mais confortáveis do mundo. Porque isso é bom serviço. Se não puder, é melhor declarar-se indigente, porque o Estado tem bons programas para estes casos. Mas, lembre-se, você deve ser gente ou indigente, esse é o negócio.
“Não importa o dinheiro mas sim comprar com o coração”; “Sua saúde é nosso negócio, mas também é nossa paixão”. A verdade e a mentira chegaram a um acordo: vão caminhar juntas mas cada uma seguirá disfarçada da outra, para que o trabalho de distingui-las seja mais difícil. Ambas também concordaram em falar um idioma comum e usar a narratura social como gênero literário predominante de cada nova cultura hegemônica. Assim, buscarão a cada dia novas estratégias para negar o que se disse e dizer o que se nega e, ao mesmo tempo, fazer com que aqueles que devem sofrer a violência de uma determinada realidade sejam eles próprios que repitam a narratura que a provoca e sustenta. Violência doce, mas doce até o fim. E quando alguém se atrever a duvidar de qual é qual, se quem fala é a verdade ou a mentira, será crucificado ou exilado pela mesma turba, em nome da coerência prática e da paz mundial.
Fonte: ViaPolítica/Tlaxcala/O autor

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