domingo, 25 de abril de 2010

As pesquisas da RBS, em 2002, e a campanha Zero Fora



Triangulação de interesses

Gilmar Antonio Crestani (*), no Observatório da Imprensa

A vantagem da mitologia grega é que ela nos oferece os exemplos do comportamento humano facilmente identificáveis em qualquer sociedade em todos os tempos. Certos fatos da realidade, difíceis de serem explicados sob o domínio da razão, podem muito bem ser compreendidos com a ajuda dos arquétipos.

É o caso, por exemplo, do triângulo que encima este artigo. Diferente das personagens da Quadrilha do poeta Drummond (João amava Teresa que amava Raimundo, que…), Zeus, o deus do raio e do trovão, amava Hera e com ela se casara. Embora casado com uma deusa, não dispensava o assédio às mortais, dentre as quais a filha de Cadmo e da ninfa Harmonia, a princesa Sêmele. Disfarçado de homem, Zeus mantém um caso com ela que, claro, acaba engravidando.

No Brasil temos a lenda do Boto, estrelado no cinema por Carlos Alberto Ricelli, que, no fundo, relê o mito. Como faz a filha solteira, sem namorado, explicar em casa as razões de sua gravidez, mormente quando a barriga cresce? Que outro assunto geraria mais fofoca na vizinhança, ainda mais quando se é a herdeira da casa real de Tebas? Hera, ciosa de seus direitos matrimoniais, adota a forma da ama de Sêmele para induzi-la a exigir de Zeus que se apresente na sua verdadeira forma. Zeus, ao se apresentar no seu esplendor divino, acaba fulminando a amante grávida. O todo-poderoso extrai a criança do ventre da vítima, que já estava no sexto mês, e a enxerta em suas coxas. Literalmente, esta ele segurou nas coxas. A criança veio a ser ninguém menos que o deus Dionísio, ou Baco para os romanos, inspirador das festas dionisíacas, por sua vez origem da tragédia e da comédia…

Somando as mentiras divinas de um lado e as satanizações ideológicas de outro, o coronelismo eletrônico gaúcho pariu um fruto tão embriagador quanto adulterino. E quem foi obrigado a segurar nas coxas, com o único intuito de desviar o foco do verdadeiro sentido, como mostrou a entrevista constrangida de seu presidente à RBS, foi o Ibope.

A história dos bastidores das eleições estaduais, envolvendo os veículos da RBS, lembra o livro Crônica de uma morte anunciada, do jornalista colombiano Gabriel Garcia Márquez. Aliás, não fiz outra coisa ao longo deste ano, em minhas colaborações bissextas a este Observatório, do que mostrar a desfaçatez olímpica do tonitruante coronelismo eletrônico. Qual Zeus, o que não consegue com assédio fulmina pelo raio do monopólio. Aliás, o atual principal intérprete político da empresa, dublê de cronista, comentarista e recadeiro, qual ciumenta esposa disfarçada de ama, quando se trata de manipulação de pesquisas eleitorais tem antecedentes nada recomendáveis. Embora o mote por estes pagos seja “esqueça o que fizemos ontem”, eu ainda lembro da manipulação das pesquisas feita em 1988 no jornal Correio do Povo sob as barbas da mesma personagem. Na véspera deste pleito, um dos mais ferozes membros da trupe, escalado para atacar o atual governo estadual, chegou a afirmar que até um poste ganharia do PT. De onde vinha tamanha convicção, não sei. O certo é que, apurados os votos, provou estar com a razão. Só que o poste já não tinha tantos galhardetes quanto apregoava.

Numerologia

Não é de admirar que a Matemática, embora sempre tenha sido considerada uma ciência exata, vez que outra merece alguns reparos para que fique ainda mais exata. Em se falando de pesquisa, então, é que a conta não fecha mesmo. No somatório dos fatos, contudo, resta sempre a mesma conclusão: os erros sempre favorecem os eleitos da empresa, nunca seus adversários. Vejamos:

24/10 – Pesquisa CEPA/RBS, divulgada pelo jornal Zero Hora:

Tarso – 38,4%;

Rigotto – 56,5%;

Margem de erro – 2,4% .

25/10 – Pesquisa do Centro de Pesquisa Correio do Povo (CPCP), divulgada pelo jornal Correio do Povo:

Tarso – 47,4%;

Rigotto – 52,6%;

Margem de erro – 2,2%.

26/10 – Pesquisa Ibope, contratada pela TV Gaúcha S.A. e divulgada pelo jornal Zero Hora, ambos do grupo RBS:

Tarso – 39%;

Rigotto – 55%

Margem de erro – 2,2%.

27/10 – Pesquisa de boca-de- urna do Ibope, divulgada por todos os veículos da RBS:

Tarso – 44%;

Rigotto – 56%.

Esta pesquisa está na página do Ibope , mas não consta do ClicRBS, onde estão as demais.

No dia das eleições, sai a boca de urna do Ibope, aliás, a única que os coronéis eletrônicos não ousaram disponibilizar no sítio destinado à cobertura das eleições. Os comentaristas da RBS começam espinafrando a pesquisa do concorrente e todos os demais que haviam duvidado da seriedade dos números divulgados pelos consórcios CEPA & RBS e Ibope & RBS. Sequer se deram ao trabalho de explicar a gritante diferença entre duas pesquisas do mesmo Ibope.

A prova dos nove foi dada pelo TRE. Este acabou ratificando não só a competência do Centro de Pesquisas Correio do Povo, como virou prova irrefutável da irrealidade cotidiana dos senhores do raio e do trovão. Por que dois institutos (Cepa & Ibope) teriam pesquisas com tantas coincidências? Coincidiam nos números, coincidiam nos beneficiados, coincidiam nos prejudicados e, coincidência maior, ambos são fiéis acompanhantes da RBS desde outros carnavais eleitorais. E todas as vezes o erro sempre foi em prejuízo do PT e em benefício do eleito dos coronéis. Claro, não!?

Resultado pelo TRE:

Rigotto – 52,67%;

Tarso – 47,33%.

A diferença abissal trombeteada sumiu no ralo do desmando ético, como tantos outros procedimentos que apenas consolidam o “modus operandi” cotidiano da RBS.

Assinaturas canceladas

Quer ver? Feita a apuração, começaram as análises. Um locutor vai nomeando uma cidade administrada pelo PT. O outro, como os jograis da Disapel, completa: Tarso perdeu. Quando o eleito da RBS perdia para Tarso na cidade administrada pelo PMDB, a dupla de locutores era de um mutismo petrificante. Nesta quinta-feira (1º/11/2002), o jornal Pioneiro, sediado em Caxias do Sul, também do grupo RBS, produziu matéria com o mesmo viés, mostrando todas as cidades administradas pelo PT em que Tarso havia perdido. Por que não fez o mesmo com relação ao seu eleito? Poderia mostrar as administrações em que o partido coligado, o PSDB, perdeu para o PT? E, se levasse a informação um pouco mais a sério, informaria ao seu público que a única pessoa presa por compra de votos nestas eleições aqui no RS pertence à mesma agremiação de figurinhas carimbadas como Joaquim Roriz, Padilha Rima Rica et alli.

Como já sou “funcionário público identificado, obsessivo”, por vir criticando a postura da RBS, nesta oportunidade cedo a palavra ao Correio do Povo, que estampou na capa da edição de 28/10/2002 o seguinte:

“‘Independente, nobre e forte procurará sempre sê-lo o Correio do Povo, que não é órgão de nenhuma facção partidária, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna.’ Esse cânone do jornalismo independente, ditado no primeiro editorial, há 107 anos, patrimônio inegociável, presidiu, mais uma vez, a conduta do Sistema Guaíba-Correio do Povo nas eleições de 2002. O Centro de Pesquisa Correio do Povo, o primeiro a detectar as variações nas intenções de voto no 1º turno, divulgou na edição do dia 25 de outubro a sua última pesquisa, apontando 52,6% para Germano Rigotto e 47,4% para Tarso Genro. No dia seguinte, o jornal Zero Hora publicava duas pesquisas: o Ibope atribuía vantagem de 16 pontos percentuais em favor de Rigotto, com 55%, sobre Tarso, com 39%. O Cepa-Ufrgs, que em pesquisa publicada quinta-feira dava vantagem de 19 pontos para Rigotto, reduzia a diferença para 9 pontos percentuais. Na boca-de-urna, ontem, o Ibope apontou 12 pontos percentuais de diferença. As urnas falaram e Rigotto venceu com diferença de 5,3%. O CPCP, comandado por Elaine L’sch, ‘errou’ por 0,1%. O presidente do TRE, Marco Antônio Barbosa Leal, cumprimentou o CPCP, ressaltando que foi o único que acertou o resultado da eleição para o governo do Estado.”

A desfaçatez contínua da manipulação causou uma indignação tão grande que grupos se formaram para exigir um mínimo de decência do coronelismo eletrônico. Para começar, a campanha alerta para “não comprar nem assinar jornal que mente”. Orienta também no sentido de que se deve evitar consumir produtos dos patrocinadores da famigerada, pois “quem patrocina a baixaria é contra a cidadania”.

Aliás, este mesmo grupo recebeu a informação de que a pesquisa Cepa, por exemplo, havia sido divulgada antes de estar oficialmente concluída. Ao ouvir a reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul a respeito do envolvimento da instituição em tais pesquisas, a chefe de gabinete de sua magnificência negou o óbvio, mas acatou o principal: “Em primeiro lugar gostaria de esclarecer que o Cepa não associa seu nome a UFRGS. Ele é um órgão auxiliar da Escola de Administração, portanto pertence à UFRGS.” De fato, a apresentação, de 25/10/2002, começava assim: “A Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através do Centro de Estudos e Pesquisas em Administração – CEPA, apresenta, a seguir, os resultados da pesquisa sobre intenção de votos no Rio Grande do Sul quanto ao segundo turno das eleições para presidente da República e governador do estado nas eleições de 2002.”

Ao assumir o papel que lhe cabe neste latifúndio da desinformação, a reitora e um professor da universidade acabaram emprestando o nome ao coronelismo para legitimar a prática, conforme reza o artigo perpetrado pelo presidente da RBS.

Desolados e inconformados com a ousadia da empresa, espontaneamente começou um movimento de cancelamento de assinatura do jornal Zero Hora. Para frear a significativa perda de assinantes, o presidente do grupo, Nelson Sirotsky, neste domingo (3/11/2002), por motoboy, endereçou-lhes carta com a seguinte informação: “Respeito profundamente seu ponto de vista, mas gostaria que você soubesse qual é a nossa posição neste episódio das pesquisas eleitorais. Para isso, tomo a liberdade de encaminhar-lhe esta edição dominical de ZH com um artigo de minha autoria na página 19…”.

Diálogo de surdos

Zeus, depois de ter feito soar o trovão e o relâmpago da arrogância olímpica, desce ao mundo dos mortais para tentar seduzir com conversa mole. Até porque o artigo de que fala aos ex-assinantes na carta é mais um exemplo da forma tortuosa, para não dizer desonesta, com que tentam desviar o foco do essencial. As pesquisas são um elemento menor diante do assédio perverso perpetrado cotidianamente pelos veículos do grupo aos sem-mídia em geral e aos movimentos sociais em particular. Ninguém abusou tanto do poder de distorcer, satanizando as iniciativas e as pessoas envolvidas no projeto em curso no estado nestes últimos quatro anos.

E se há as sêmeles que se deixam seduzir pela palavra fácil, como índios por espelhinhos, também é verdade que a exacerbação deste embuste traz em si o risco da implosão. Nesta hora não há raio nem trovão que dispense Zeus de prestar conta, até porque não se trai o leitor impunemente.

Para encerrar, veja como anda o diálogo em torno do cancelamento da assinatura do jornal:

– Por favor, gostaria de cancelar a assinatura do jornal Zero Hora.

– O cancelamento de assinaturas só é feito pelo supervisor da área. Mas qual é o motivo?

– Acho a Zero Hora tendenciosa.

– Veja bem, até há pouco escrevia na Zero Hora o Lula e também escreve o Luis Fernando Verissimo. Vês que tem gente de esquerda também, não?!

– Apenas disse que era tendenciosa. Não disse se era para a esquerda ou para a direita…

(*) Funcionário público federal

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