segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Carta à Presidenta


Que história, hein Dilma? Parecida com a de Lula em muitos aspectos, ela é singular em tantos outros. Quando, ainda no Estadual, você optou pela resistência à ditadura, não estava claro para ninguém que a derrota seria tão amarga. Não podia estar, não importa o que digam os profetas do acontecido. Garota de classe média, você tinha todas as condições de atravessar a ditadura como uma jovem conformista, ouvindo seu Dom e Ravel, seus Beatles, seu Caetano, ou mesmo seu Chico Buarque ou Geraldo Vandré. Todos sabemos que o conteúdo da cultura consumida não diz nada, por si só, sobre a ética ou a política de quem a consome. Você poderia ter feito isso, mas escolheu lutar. Isso não mudaria nunca em você, ainda que os métodos de luta variassem ao longo do tempo, como deve ser o caso, aliás, em qualquer luta inteligente.

Tantos fizeram autocríticas fáceis e autocomplacentes daquele período, não é mesmo? Sabe, Dilma, o grande escritor argentino Ricardo Piglia criou a personagem perfeita para definir essa turma do arrependimento confortável. Está num lindo livro intitulado A cidade ausente. Tem no Brasil. A personagem se chama Julia Gandini, e é vítima de uma lobotomia virtual que lhe impõe um discurso automortificante, cheio de certezas acerca de quão erradas estavam as certezas passadas. Nesse discurso autocomplacente, platitudes sobre a violência mascaram o fato de que a ditadura foi a grande responsável pelas atrocidades. Julia Gandini repete como um papagaio a lição da boa menina arrependida, prestando esse enorme desserviço à educação das novas gerações, levando-as a crer numa falsa simetria entre verdugos e vítimas. Qualquer semelhança com o discurso de certo deputado verde não é mera coincidência, não é, Dilma?

Você, não. Você jamais se prestou a esse jogo, que teria sido tão fácil replicar e que lhe teria rendido frutos. Sem nunca deixar de pensar o passado de forma crítica, você nunca o renegou. Isso é tão bonito, especialmente num país cuja mídia e senso comum começam a lançar lama sobre os jovens que se insurgiram contra a ditadura.

Quando a prenderam, Dilma, muita gente na VAR-Palmares ainda acreditava no sucesso da luta armada. Até na VPR ainda acreditavam. Eu suspeito que, no fundo, você já sabia que não dava, e mesmo assim você teve aquele comportamento impecável. Há uns anos escrevi um livrinho sobre a literatura pós-ditatorial, então tive que ler dezenas de testemunhos de ex-torturados. Conversei com dezenas de outros. Você superou as duas barreiras que todos mencionam como as mais difíceis: conseguir ficar calada sob o verdugo e conseguir falar depois, narrando a própria história em liberdade. A tortura quer que você delate, diga o que quer o torturador para que amanhã a vergonha se encarregue de silenciá-la. A tortura produz linguagem para depois produzir silêncio. Numa batalha imensamente desigual, você conseguiu inverter esse jogo. Hoje, você fala de cabeça erguida sobre uma experiência que, tantas vezes, eu vi fazer outros seres humanos desmoronarem. Aquele seu sacode-Iaiá no coroné Agripino, que apoiou a ditadura que a torturou e depois teve a ignomínia e a cara-de-pau de questionar sua valente mentira sob tortura, querida Dilma, foi um dos momentos mais inesquecíveis da história da República.

O velho Leonel estaria orgulhoso, você sabe. Não é significativo que tenha sido você a candidata, depois que o segundo mandato do governo Lula foi todo atravessado pela memória do trabalhismo? Você se lembra: nos anos 80, os petistas não podíamos nem ouvir falar na tradição populista. É natural. Nós tínhamos que construir o nosso espaço, e sem um chega-pra-lá nos concorrentes, teria sido impossível. Mas, por uma questão de justiça histórica, nós devemos reconhecer que, da mesma forma que matizamos alguns dos nossos projetos mais radicais, levados pela pura realidade da correlação de forças, devemos repensar o legado dessa tradição que ajudamos a combater. Você é a nossa ponte com essa tradição. Você é o caminho que vai de Leonel Brizola a Olívio Dutra.

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