O Rio Grande do Sul assiste hoje a uma novela repleta de suspense, intrigas e acusações. A empreiteira Andrade Gutierrez é a protagonista central da trama que tem a Copa do Mundo de 2014 como pano de fundo. Não demorou muito para que alguns espectadores dessa novela estabelecessem comparações com outra que marcou época no Estado, a novela Ford. Nos últimos dias, algumas notas mais ou menos tímidas em jornais e na internet falaram do medo do governador Tarso Genro reviver a novela Ford se a Andrade Gutierrez não iniciar logo a reforma do estádio Beira Rio. A comparação é curiosa e irônica sob vários aspectos. A considerar o tom da cobertura midiática dos últimos dias e a narrativa oficial dominante sobre aquele episódio trata-se, na verdade, de um caso Ford ao contrário, ao menos na percepção predominante sobre o caso.
O governo Olívio Dutra foi duramente criticado por não ter aceitado os termos do acordo que teria sido feito pela Ford com seu antecessor, Antonio Britto. Olívio e o PT acabaram carimbados com a acusação de ter “mandado a Ford embora”, para a Bahia, para ser mais preciso. Agora, aparecem vozes dizendo que, mais uma vez, um governo do PT vai mandar um empreendimento embora, no caso, a Copa do Mundo de 2014. A comparação é esdrúxula, obviamente, pois se trata de duas situações completamente distintas, desde a natureza do negócio envolvido, passando pelos personagens e chegando as respectivas responsabilidades do setor público e da empresa envolvida. Mas, paradoxalmente, essa comparação esdrúxula tem um aspecto didático, inclusive para refletir sobre o caso Ford.
A desastrada nota da Andrade Gutierrez acusando o Banrisul pelo atraso na retomada das obras no Beira Rio mexeu com os brios do povo gaúcho, a começar pelos de sua mídia que passaram 24 horas por dia, nos últimos dias, destacando a gravidade da atitude da empreiteira e elogiando a atitude da direção do Banrisul que se nega a conceder um empréstimos sem as garantias bancárias consideradas adequadas. E eis que de repente, não mais do que repente, vários de nossos bravos comunicadores descobrem que grandes empresas capitalistas têm uma predileção por correr poucos riscos e usar o máximo de dinheiro público. Mas, alguém poderá se perguntar, o caso Ford não tinha algo a ver com isso: riscos (poucos) privados, dinheiro (muito) público?
Como assim, uma grande empresa querer fazer um grande negócio com dinheiro público? Com o nosso dinheiro? Assim até eu sou empresário…Essas são algumas das declarações que se repetem nos últimos dias em vários meios de comunicação. E a direção do Banrisul é saudada, com justiça e correção, pelo seu zelo com o dinheiro público. O mesmo Banrisul que, naquele período onde se começou a discutir a vinda da Ford para o Estado, foi incluído na lista das privatizações.
De repente descobrimos que é bom termos um banco público e dirigentes que zelam pela coisa pública; e que é ruim termos grandes corporações querendo maximizar lucros minimizando riscos e usando recursos públicos para tentar atingir esse objetivo. Agora, que redescobriram a importância do interesse público, nossa valorosa mídia poderia dar um passo adiante e dedicar um pouco de atenção aos milhares de portoalegrenses que já estão sendo afetados pelas obras da Copa e que permanecem quase que completamente invisíveis nos noticiários diários. E permanecem invisíveis por conta da mesma lógica que anima a obsessão pelo lucro máximo com o risco mínimo.
A atitude da Andrade Gutierrez não é um ponto fora da reta. Alavancar negócios privados com recursos públicos, correndo o mínimo risco possível, é uma das molas mestras do nosso capitalismo. A empreiteira só deu azar. Montou sua estratégia e divulgou sua nota no lugar errado e na hora errada. Fosse alguns anos atrás, aqui no Rio Grande do Sul, poderia ter encontrado um Banrisul privatizado e governantes menos contaminados por esse ranço do interesse público.
Do RS Urgente
Ilustração do Kayser
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