Texto extraído da coluna do blog do Mario
Marcos (http://mariomarcos.wordpress. com/),
que trata de futebol e outras coisinhas mais....
Escritor espanhol,
autor de livros de sucesso (El Desorden de tu Nombre, La Soledad era esto,
entre outros), jornalista, o espanhol de Valência Juan José Millás, 66 anos,
agitou a Espanha e boa parte da Europa ao publicar em agosto uma coluna (veja abaixo)
sobre a crise atual e duramente crítica ao sistema capitalista.
Virou o texto mais
lido do jornal El País, ganhou espaço nas redes sociais, passou a ser divulgado
por leitores comuns, ganhou debates. Millás fala da crise espanhola e sobre o
torniquete manejado pelo banco europeu que sufoca o país, mas é um texto que serve
para todo o mundo – inclusive para países que não sofrem tanto com a
crise.
Há algum tempo,
criticar o capitalismo era quase proibido. Qualquer restrição sempre era
rebatida com aquela velha bobagem de que o crítico era de esquerda, comunista,
agitador e mais alguns anacronismos. Felizmente, a crise ensinou que nenhum
sistema está livre de críticas e de distorções – como Millás mostra na
sua coluna.
Vale a pena ler com
atenção o texto que peço licença a Millás (foto) para reproduzir, com
orgulho, aqui no blog:
Se
percebemos bem – e não é fácil, porque somos um bocado tontos -, a
economia financeira é a economia real do senhor feudal sobre o servo, do amo
sobre o escravo, da metrópole sobre a colónia, do capitalista manchesteriano
sobre o trabalhador explorado. A economia financeira é o inimigo da classe da
economia real, com a qual brinca como um porco ocidental com corpo de criança
num bordel asiático.
Esse
porco filho da puta pode, por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se
valorize ou desvalorize dois anos antes de sequer ser semeada. Na verdade, pode
comprar-te, sem que tu saibas da operação, uma colheita inexistente e vendê-la
a um terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir,
de acordo com os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço
desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem que tu ganhes mais caso suba,
apesar de te deixar na merda se descer.
Se
o preço baixar demasiado, talvez não te compense semear, mas ficarás endividado
sem ter o que comer ou beber para o resto da tua vida e podes até ser preso ou
condenado à forca por isso, dependendo da região geográfica em que estejas
– e não há nenhuma segura. É disso que trata a economia financeira.
Para
exemplificar, estamos a falar da colheita de um indivíduo, mas o que o porco
filho da puta compra geralmente é um país inteiro e ao preço da chuva, um país
com todos os cidadãos dentro, digamos que com gente real que se levanta
realmente às seis da manhã e se deita à meia-noite. Um país que, da perspetiva
do terrorista financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um
conjunto de bonecos Playmobil andam de um lado para o outro como se movem os
peões no Jogo da Glória.
A
primeira operação do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista
convencional: o tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o caráter de pessoa,
coisifica-a. Uma vez convertida em coisa, pouco importa se tem filhos ou pais,
se acordou com febre, se está a divorciar-se ou se não dormiu porque está a
preparar-se para uma competição. Nada disso conta para a economia financeira ou
para o terrorista económico que acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país
– este, por acaso -, e diz “compro” ou “vendo”
com a impunidade com que se joga Monopólio e se compra ou vende propriedades
imobiliárias a fingir.
Quando
o terrorista financeiro compra ou vende, converte em irreal o trabalho genuíno
dos milhares ou milhões de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na
creche pública – onde estas ainda existem – os filhos, também eles
produto de consumo desse exército de cabrões protegidos pelos governos de meio
mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou
União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser
desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões
de euros que estavam nos nossos cofres.
E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro.
E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro.
Tu
e eu, com a nossa febre, os nossos filhos sem creche ou sem trabalho, o nosso
pai doente e sem ajudas, com os nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias
sentimentais, tu e eu já fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por
Merkel, já não temos as qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos
nossos semelhantes. Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de
idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível, como esse
pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na
nuca em nome de Deus ou da pátria.
A
ti e a mim, estão a pôr nos vagões do trem uma bomba diária chamada prémio de
risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia financeira.
Avançamos com ruturas diárias, massacres diários, e há autores materiais desses
atentados e responsáveis intelectuais dessas ações terroristas que passam
impunes entre outras razões porque os terroristas vão a eleições e até ganham,
e porque há atrás deles importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos
especulativos de que somos vítimas.
A
economia financeira, se começamos a perceber, significa que quem te comprou
aquela colheita inexistente era um cabrão com os documentos certos. Terias tu
liberdade para não vender? De forma alguma. Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou
ao vizinho deste. A atividade principal da economia financeira consiste em
alterar o preço das coisas, crime proibido quando acontece em pequena escala,
mas encorajado pelas autoridades quando os valores são tamanhos que transbordam
dos gráficos.
Aqui
se modifica o preço das nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o
problema, ou mais, enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E,
por Deus, as autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta
que te vendeu, recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto
financeiro, ou seja, um objeto irreal no qual tu investiste, na melhor das
hipóteses, toda a poupança real da tua vida. Vendeu fumaça, o grande porco,
apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia financeira, já que
estão ao seu serviço.
Na
economia real, para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e
dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro,
e embalar e distribuir e faturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade imensa de
tempo e de energia para obter uns cêntimos que terás de dividir com o Estado,
através dos impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados
porque a economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco. A economia
financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa
também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e
com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista
doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do
sequestrado.
Há
já quatro anos que nos metem esse cano pelo rabo. E com a cumplicidade dos
nossos difusores das idéias neoliberais.
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