Quinta-feira, 27 de junho, Porto Alegre,
frente do Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. Nove horas da noite.
Na Praça da Matriz, mais de quatro mil manifestantes fazem seu protesto
legítimo em perfeita harmonia, inclusive com as forças da Brigada
Militar, que garantem a segurança para a cidadania manifestar-se
livremente. Um cordão de isolamento de policiais militares, protegidos
por escudos, garante a integridade do Palácio.
Durante uma hora e meia os policiais aguentam impávidos e
disciplinados, por ordem originária do próprio Governador, uma chuva de
pedras, garrafas e paus, jogadas por aproximadamente 150 mascarados,
postados no lado esquerdo do Praça, fundidos no meio de uns 200
manifestantes, que não impedem suas ações violentas e provocativas, mas
inibem uma resposta da Polícia, cuja reação poderia atingir pessoas que,
inocentemente ou não, não estavam envolvidas na “ação direta”.
No céu, um helicóptero com letreiros eletrônicos voeja rente à Praça,
com dizeres contra a existência dos Partidos e afirma que, desta forma
–sem os partidos- o Brasil “tem jeito”. Quem promoveu este voo? Quem o
pagou? Como ele se conecta com as manifestações?
Dentro do Palácio um “governo de partidos”, eleito no primeiro turno,
que governa com mecanismos de participação popular combinados de forma
inédita, tais como o Orçamento Participativo, o Gabinete Digital, os
Conselhos Regionais de Desenvolvimento, o Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social , a Consulta Popular. Esta, por exemplo, é um
procedimento de votação eletrônica ( 1 milhão e 100 mil votos no anos
passado) que, através de perguntas diretas à população, promove a
liberação hierarquizada de recursos (este ano, mais de duzentos milhões
de reais) para investimentos, principalmente em pequenas obras e nas
áreas da saúde e da educação.
Seguramente, neste evento emblemático temos três protagonistas claros
da crise: a cidadania manifestando-se na defesa de direitos; grupos
“sem rosto” que servem de massa de manobra para provocações, como ocorre
historicamente nestas conjunturas (cujos objetivos são obscuros, mas
funcionam como desestabilizadores da democracia política); e a direita
conspirativa, que trabalha nas “sombras” –no caso, “no ar”- dando
sequência ao trabalho feito pela mídia dominante, que nos últimos anos
dissolveu o prestígio dos partidos, dos políticos em geral e de todas as
instituições democráticas da República.
As causas mais visíveis da insatisfação popular, certamente estão nas
péssimas condições do transporte coletivo e do sistema de saúde pública
nas grandes regiões metropolitanas. Ou seja, na verdade faltou Estado,
seja como prestador, seja como organizador-controlador, o que se
combinou com a ascensão de milhões de jovens ao mundo do trabalho e às
universidades públicas e não públicas (estas, através do Prouni),
sufocando, não só a mobilidade destas grandes regiões, mas também a
capacidade da estruturas públicas prestarem serviços de mediana
qualidade. De outra parte, os apelos da sociedade consumista oferecem
promessas espetaculares que apenas uma parte da população pode acessar,
transformando o desejo sonegado de muitos em frustração, crime e
violência irracional.
Não se pode omitir que sobre estas condições ocorreu um processo
geral de hipnose fascista, que não tem precedentes na História do país. E
esta “hipnose” concentrou seu convencimento, não na denúncia das
desigualdades e da riqueza concentrada, mas na denúncia da “corrupção”,
como se ela fosse uma propriedade e uma qualidade dos políticos atuais e
dos governos atuais.
Não foi promovido o combate à corrupção como mazela de um Estado
reprodutor de desigualdades e protetor de privilégios corporativos e de
classe, pois isso suporia reconhecer que tanto nos partidos, no serviço
público, como nas empresas, em todas instituições (até mesmo na mídia),
há uma grande maioria de pessoas que não tolera a corrupção e que não a
aceita, por princípios morais e políticos. A campanha foi feita de modo a
incriminar de maneira plena a esfera da política, os partidos e,
particularmente, os dois governos que colocaram os pobres e os
trabalhadores como protagonistas da cena pública.
Ao fazer uma incriminação generalizada colocando, de um lado, a
grande imprensa como a virtude moral do país, e, de outro lado, os
partidos e os agentes públicos como a fontes da corrupção, o que ocorreu
foi a degradação dos instrumentos democráticos para combater a própria
corrupção, restando a grande mídia como fonte de toda a moralidade
republicana, com poderes totalitários para dizer quem presta e quem não
presta, quem merece confiança e quem não merece. Assim, quando um Juiz
Privado, a mídia, transforma-se em monopólio do Juízo Público, estamos
entrando numa crise da República: a marginalidade violenta e os
fascistas clássicos e pós-modernos, que emergem nesta situação, não
precisam mais se conter e sentem-se autorizados ideologicamente a
saquear e a incendiar.
É preciso compreender, porém, que o que está ocorrendo no país não é
mera invenção midiática. É óbvio que os partidos de esquerda e as
instituições “dissolvidas” por esta manipulação sobre a corrupção não
são inocentes. Seus vícios, seu acomodamento ideológico, seu afastamento
das questões mais intensas que desqualificam a vida cotidiana do povo,
facilitaram esta agenda da direita que, como se vê, sorri satisfeita com
toda a crise e pretende transformá-la em cavalo de batalha eleitoral.
Nossos partidos precisam captar esta energia criadora que vem das ruas e
transformá-la em políticas democráticas de largo alcance.
Nestas circunstâncias, a crise da democracia transmudou-se em crise
da República. Isso não quer dizer, no entanto, que o pacto democrático
não possa ser recuperado, tanto pela “via conservadora”, como pela “via
da radicalização da democracia”. Na primeira hipótese, pela “via
conservadora”, basta que os poderes voltem a funcionar em relativa
harmonia, para simular que “as coisas começaram a melhorar”. Se eles
voltarem a operar nesta relativa harmonia, os clamores populares poderão
deixar de ser valorizados pelos meios de comunicação e a situação
poderá se acalmar, mas a democracia não será revalorizada e a República
não será reformada. Nem serão criadas novas instituições que permitam
fortalecer a intervenção do povo no processo político e, em
consequência, as “crises” virão ainda mais fortes no futuro.
A essência da crise atual, portanto, é que os poderes republicanos e
as suas instituições políticas não tem mais chances de recuperar sua
plena legitimidade para dar eficiência à democracia - capacidade de
resposta às justas demandas populares -, sem novas formas de
participação nas decisões públicas e sem novas fontes de legitimação do
poder. O Congresso tem mecanismos burocráticos de funcionamento que
permitem, frequentemente, que interesses escusos impeçam votações e que
minorias sem programa e sem princípios dominem a cena parlamentar,
desprestigiando todo o corpo representativo. É preciso um sopro “direto”
do povo para que ele se atualize e se sensibilize com os problemas
reais que o país atravessa.
Falo aqui de uma assembleia constituinte (revisora) específica,
convocada conforme a Constituição, por Emenda Constitucional, para
conectar as instituições políticas da República com o povo, que é o
poder constituinte real. Seu objetivo é integrar, de forma direta, a
atual energia política despertada pelas grandes manifestações de massas,
com delegados eleitos especialmente para fazer a Reforma Política.
Estes representantes, eleitos para este fim específico,
impossibilitados de concorrerem nas próximas eleições, (admitido um
percentual de representantes “sem partido”), pressionados
democraticamente pela sociedade em movimento poderiam, através de
mudanças substancias nas normas constitucionais que versam sobre os
Partidos, financiamento das campanhas e Direito Eleitoral, “democratizar
a democracia”, como diz Boaventura Souza Santos. E assim expandir os
marcos da participação direta do povo, já previstos na atual
Constituição Federal, combinando-a com a representação estável e
previsível dos processos eleitorais tradicionais.
O que está ocorrendo durante as manifestações é também a sequência de
uma lenta e eficaz lavagem cerebral midiática, acolhida amplamente nas
“redes sociais”, cujo objetivo está sintetizado na visão de que “o
gigante acordou”, “vamos construir um novo Brasil” e “vamos varrer com a
corrupção”. Tais sínteses traduzem uma mentira meticulosamente
construída, pois os avanços democráticos que o país vem sofrendo,
inclusive na luta contra a corrupção, datam da Constituição de 88 e, no
plano social, dos dois governos do Presidente Lula, ampliados inclusive
no atual governo.
Estas “palavras de ordem”, induzidas dos porões da direita extrema,
levam as novas gerações a uma romantização do futuro, com graves
frustrações de médio prazo. Embora a crise das regiões metropolitanas
-motivação imediata das inconformidades em pauta- venha de erros e
omissões dos atuais e anteriores governos (especialmente no que refere
ao transporte urbano e a saúde), nenhuma destas questões será resolvida
em profundidade nos próximos dez anos. São bilhões a serem investidos e
repassados aos estados e às prefeituras, que precisam enfrentar as
agruras da crise mundial e a promoção de uma Reforma Tributária, que
principalmente desonere os pobres e as novas classes médias e, em
contrapartida, onere as grandes fortunas e as transações do capital
especulativo e rentista.
O fato é que as grandes mobilizações populares abriram caminhos que
estão em disputa no campo da política. Os partidos de esquerda, se
estiveram à altura da crise atual, se forem mesmo de esquerda e
democráticos, devem adotar uma estratégia unitária de revalorização da
ação política e dos partidos, combinando-a com a criação de novos canais
de democracia direta e de participação popular, articulados com a
democracia representativa. Ou seremos vencidos pelo conservadorismo, que
poderá nos levar às novas formas de totalitarismo pós-moderno, que
tanto controlará as mentes, a pauta, como ditará o que é lícito ou
ilícito, numa democracia ainda mais elitista do que a presente.
(*) Governador do Estado do Rio Grande do Sul
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