terça-feira, 9 de junho de 2009

A HISTÓRIA DE LILI LOHMANN

Se alguém lhe disser que você é substituível, não acredite

ELIANE BRUM
ebrum@edglobo.com.brEste endereço de e-mail está sendo protegido de spam, você precisa de Javascript habilitado para vê-lo

Dias atrás, meu telefone na redação da ÉPOCA tocou quando eu arrumava minhas coisas para ir embora. Atendi um pouco impaciente. Do outro lado, uma voz de mulher com sotaque alemão. “Eliane, aqui é Lili Lohmann.” No mesmo instante, voz e nome resgataram-me para mim mesma. “Estou ligando para dizer que li teu último livro, O Olho da Rua, e adorei.” De novo, eu sabia quem era eu. Lili me contava o que importava na vida. E aquela noite que seria mais uma, numa rotina de repetições, povoou-se de significados. Lili me devolvia a grandeza.

Quando eu aprendi a ler, aos sete anos, senti que minha vida ganhava todas as possibilidades do mundo. Cheguei perto dessa sensação algumas vezes ao longo dos meus 43 anos, mas nunca como a dos primeiros livros. Desde então, eu, que era ao mesmo tempo uma criança que olhava muito e falava pouco, mas também uma criança que aprontava bastante, passei a atravessar meus dias trancada no quarto lendo um livro atrás do outro. Às vezes nem comia. Ou me sentava à mesa para o almoço imersa na última linha lida, temerosa de perdê-la numa colherada de feijão e, com ela, a chance de chegar à linha seguinte.

Lia até quatro, cinco livros por dia. Comecei pelos infantis e logo passei para os adultos. Aos dez anos, eu já tinha lido todos os livros de José de Alencar, não porque gostasse, mas porque não conseguia parar até chegar ao fim da coleção. E me atraía nele aquele erotismo velado, de loiras que amavam índios de pele cor de cuia, dândis que se perdiam pela marca de um pé minúsculo deixada na lama, moças virtuosas que viravam prostitutas. A partir daí, nada, nem mesmo minha iniciação sexual, foi vivida sem a ajuda inestimável dos livros. Era neles que eu buscava as respostas às tantas dúvidas que me assaltavam.

Então conheci Lili. Essa moça de origem alemã, ao mesmo tempo austera e enérgica, magra e sólida, com cabelos castanhos encaracolados e cortados curtos, cuidava da seção de livros da Livraria Cultural, a maior de Ijuí, minha cidade natal no Rio Grande do Sul. E Lili gostava de livros, entendia de livros. Meus pais, ambos descendentes de imigrantes italianos esfomeados e analfabetos, tinham um acordo com relação à sua prole: não poderia faltar comida nem educação. Passávamos às vezes anos sem ganhar uma roupa, até os oito anos eu ainda dormia num berço, com as pernas encolhidas, porque não havia dinheiro para comprar uma cama, mas a mesa era farta e os livros presentes.

Mas nem mesmo com esse firme propósito era possível para eles, professores eternamente mal pagos, como todos nesse país, dar conta da minha voracidade de leitora. Lili então, com o cuidado de não expressar nenhuma condescendência, me deixava ficar no canto da livraria lendo por horas livros que jamais compraria. Sentada no chão, num canto, com prateleiras e mais prateleiras à disposição, foi o mais perto que consegui chegar de uma ideia de paraíso.

Foi ali que aprendi a começar a ler pelo cheiro do papel. Meu primeiro ato era uma cafungada quase erótica naquelas folhas virgens, as quais eu seria a primeira a desbravar. Depois eu passava a mão na lombada, sentindo formato e textura, acariciava as páginas com reverência e delicadeza. Só então lia a primeira palavra, possuída por imensa felicidade. Até hoje repito esse ato nas livrarias, causando algum estranhamento nas pessoas próximas. Para mim, os livros sempre foram sagrados, mas apenas para que pudessem ser profanados.

Um dia Lili colocou uma escada à minha disposição, e então pude alcançar os livros mais altos. Nunca encontrei palavras para expressar o que essa escada representou. Com ela, eu podia alcançar a Lua. Eu era Neil Armstrong, mas não para fincar nenhuma bandeira, não era a posse que me interessava. Contentava-me em acariciar o chão lunar com a ponta dos dedos. A certa altura, nunca soube se porque alguém reclamou daquela criança metida por horas numa dobra das prateleiras sem nada comprar ou porque ela realmente acreditava no meu discernimento, Lili me promoveu. Fui incumbida da tarefa de ler os livros recém-lançados para dizer a ela se devia ou não encomendá-los. Ganhei então o privilégio de levá-los para casa. Aos nove anos, eu era uma profissional com imenso poder.

Quando Lili anunciou que iria deixar a livraria, meu mundo ficou profundamente abalado. Talvez tenha sido minha primeira grande perda. Com ela, toda a magia, assim como os bons livros, partiu. As que a sucederam nunca perceberam a grandeza do seu trabalho, deixavam-se reduzir a funcionárias. Entre elas e os livros não havia intimidade, seria o mesmo se apertassem parafusos. Nunca soube as razões oficiais pelas quais a livraria mais importante da cidade foi se terminando. Mas, para mim, era a minha versão que fazia mais sentido. Primeiro a livraria perdeu Lili, depois a seção de livros, restando apenas a papelaria, e, por fim, morreu. Não havia como ser diferente. Livrarias sem alma podem até vender muito, mas jamais serão grandes. Não há vida sem o mistério da vida. Há apenas atos destituídos de gente.

Nosso tempo, me parece, sofre de dois males que se complementam. Pelo menos dois. Um deles é acreditar que as pessoas importantes são aquelas que batem recordes, ganham milhões ou aparecem na capa das revistas de celebridade com seus corpões. Fora desse hall da fama determinado por razões que servem aos poucos de sempre, a vida de todos os demais se torna pequena, insignificante. O outro mal é aquilo que está no discurso de gurus e da maioria dos chefes nas mais diversas áreas, que se resume por uma frase dita com ares de verdade absoluta: “Ninguém é insubstituível”.

Eu acredito na grandeza das vidas supostamente comuns. Interesso-me pelos acontecimentos que se repetem no cotidiano, observo mais os desacontecimentos. Sou fascinada pelo sentido que cada um cria para sua existência no mundo, pelas pequenas delicadezas que nos fazem acordar e levantar da cama a cada dia, apesar de todas as brutalidades. Acredito que nossa vida é uma busca pelo extraordinário que mora em nós. E que só o encontramos ao descobrir o extraordinário que mora no outro. É esse o exercício de resistência de cada homem, de cada mulher, diante do espelho do mundo, a cada manhã: não se deixar reduzir, um exercício que só pode ter êxito na generosidade ao olhar para o outro em busca de sua singularidade.

Então, quando ouço essa frase fatídica – “ninguém é insubstituível” – só sinto pena. Quanto medo tem aquele que a pronuncia. Como ele suspeita de sua insignificância. E como ele se deixou reduzir. A minha frase é outra: Ninguém é substituível. A singularidade do que sou, só eu sou. A singularidade do que é você, só você é. O que você não fizer, não será feito do jeito que só você pode fazer. Se você deixar de ser o melhor que pode ser, se desistir de dar o melhor que pode dar, é uma falta inscrita na história do mundo. E só há um jeito de alcançar a grandeza de cada um de nós, que é a descoberta da grandeza do outro.

É só o reconhecimento da singularidade de cada um que, paradoxalmente, pode nos levar à descoberta de que somos mais iguais do que diferentes. E ao acreditarmos que ninguém é substituível, torna-se impossível a discriminação por raça, religião ou ideologia. É o imenso valor da vida que alcançamos, da nossa e da dos outros. Então, quando alguém lhe disser que você é substituível, tenha compaixão. E não acredite. Nunca permita que reduzam o mistério que é a sua vida – e a do outro. Até mesmo do equivocado que proclama frases como essas.

Passei décadas sem Lili. Deixei Ijuí aos 17 anos, vivi em Porto Alegre até os 33, desde 2000 moro em São Paulo. Anos atrás, fui procurada pela editora do principal jornal de Ijuí, o Jornal da Manhã, para participar de uma série sobre ijuienses que haviam “vencido” fora da cidade. Minha tarefa era escrever um texto sobre essa aventura pessoal. Eu aceitei. Mas escrevi um texto em que dizia que mais difícil do que partir era permanecer na cidade. E contei a história de Lili e de como ela havia transformado a minha vida.

O texto publicado alcançou Lili, numa cidade próxima e ainda menor, algum tempo depois. Ela vivia tempos duros, estava triste, solitária. Desconectada de sua grandeza. Até então, não tinha ideia de que havia sido tão decisiva na vida de uma outra pessoa. Nos reencontramos nesse reconhecimento. E eu pude contar a Lili o que ela também fez de mim. Era eu que agora escrevia livros. Ela poderia me ler porque um dia permitiu que eu lesse numa esquina das prateleiras de uma livraria de cidade pequena, onde ela vivia cada dia consciente da grandeza de seu trabalho.

Contei essa história aqui por várias razões. E por profundo sentimento. Mas também para propor a você, que me lê, o exercício de identificar no tempo as pessoas que, com seus pequenos grandes gestos, deram sentido à sua vida. Fizeram diferença, fizeram de você mais você. E depois de redescobri-las em lembranças há muito esquecidas, contar a elas que foram/que são insubstituíveis. E então aprender para sempre que são essas as pessoas importantes, mesmo que não sejam elas a ilustrar a capa das revistas de celebridades.

Dias atrás, quando Lili Lohmann me ligou numa noite em que eu também me iludia que eram horas iguais a todas as outras, ela me disse uma frase que até agora me faz dançar: “Quando eu leio o que você escreve é como se eu ganhasse um presente”. Lili, você é um presente para sempre presente em tudo o que sou.


Repórter especial de ÉPOCA, integra a equipe da revista desde 2000. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de Jornalismo. É autora de A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo)

Nenhum comentário:

Postar um comentário