Lembremos, para sempre, Pinheirinho. Num país em que a desmemória é tanto uma política oficial de Estado como uma espécie de requisito para o exercício capenga e precário da cidadania, reiterar uma e outra vez o que aconteceu já é um primeiro passo. No dia 22 de janeiro de 2012, domingo, como naquele 22 de janeiro que, na Rússia, ficou conhecido como Domingo Sangrento, em São José dos Campos, São Paulo, aconteceu isto.
A combinação de elementos que compõem o massacre é uma espécie de catálogo da história do Brasil, com todos os componentes que vemos reiterados, uma e outra vez, ao longo dos anos: 1) um terreno que era propriedade do Estado (desde o assassinato de seus donos originais, em 1969) passa às mãos de um megaespeculador, já acusado de quebrar uma instituição financeira do poder público; isso não impede que a propriedade estatal seja transferida a mãos privadas por misteriosos caminhos, com fortes indícios de grilagem; 2) o poder público se exime de uma de suas mais elementares obrigações, a de recolher tributos sobre o terreno, que acumula trinta anos sem pagamento de IPTU; 3) uma comunidade de pobres, à qual foi negado um direito básico, consagrado na Constituição, o da moradia, ocupa o terreno e passa a reinventá-lo: constroem suas casas; montam um sistema de arruamento e de coleta de lixo; preservam todas as matas ciliares e nascentes do local; 4) o poder público não só se recusa a fazer o que estaria na sua alçada para ajudar os pobres (adjudicar o terreno e regularizá-lo), como atua, efetivamente, como advogado do grileiro especulador, movendo ações contra os moradores em nome do interesse privado sem nunca lembrar-se de cobrar os milhões de IPTU devidos; 5) o Tribunal de Justiça de São Paulo, o mesmo que, como bem lembrou o jurista e poeta Pádua Fernandes, anulou a condenação do Ubiratan do Carandiru, emite ordem de reintegração de posse, num contexto de conflito de competências com a Justiça Federal, que concedera ao movimento uma liminar que suspendia dita ordem; 6) com pressa e desespero que estavam em flagrante contraste com as décadas e décadas de abandono do terreno até que nele chegassem os moradores, em descumprimento de acordo político supostamente selado dias antes, em desobediência à ordem da Justiça Federal (cuja tensão com a ordem da Justiça Estadual sugeriria, para além de qualquer discussão técnico-jurídica, que o mais sensato seria esperar), em aparente contradição com a Súmula nº 150 do Superior Tribunal de Justiça (lembrada por Samuel Martins no blog de Pádua), a prefeitura e o governo estadual realizam uma invasão policial de surpresa, numa manhã de domingo, com blindados, balas de borracha e cães, impondo sobre os moradores um horror que estende durante todo o dia, sob o silêncio impassível do governo federal, com a exceção da declaração de um Ministro, de que “acompanhamos o desdobramento do caso” e a presença de um assessor, baleado pela Polícia de forma “grave mas não imperdoável”, segundo palavras de seu superior. Lançados ao relento sem nenhum plano de nenhuma instância governamental, eles voltam à condição em que os quer ver o poder. Já não são os cidadãos orgulhosos apesar de pobres, sujeitos de um poder constituinte, apesar de oprimidos, de Pinheirinho. Já eram puro homo sacer, a vida que (aos olhos do poder) não vale nada, a vida que pode ser sacrificada sem ser objeto de luto. Saltei várias etapas, mas mesmo um relato exaustivo não teria apresentado uma lógica diferente: os ricos privatizando o Estado à margem da lei, o Estado como braço armado dos ricos, com frequência ao arrepio da própria lei, o Judiciário como fundamentação legal de um saqueio já definido a priori, como fato consumado.
É um próprio membro do Ministério Público Federal, o mestre em Direito e professor da UFBA Vladimir Aras, quem caracteriza o episódio como naufrágio da Justiça, afirmando: Essa grave e vergonhosa violação de direitos fundamentais precisa ser reparada. Se não o for mediante uma intervenção federal (art. 34, inciso VI ou VII, alínea `b`, da CF) ou num incidente de deslocamento de competência (art. 109, V-A, da CF), que o seja perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, numa ação de responsabilização internacional do País.
Por que foram expulsos os moradores de Pinheirinho? A melhor resposta me parece ser a de Bruno Cava: Qualquer um em Pinheirinho sabe porque foram removidos. Sabe melhor do que os acadêmicos de direito. Basta ouvir os moradores. Porque tem muito dinheiro envolvido, porque os poderosos não podem aceitar vida fora das regras instituídas (a propriedade e o trabalho), porque não pode virar um tão mau exemplo para os pobres do mundo. Lidar com um Pinheirinho já dá tanto trabalho, imaginem mil, dez mil ocupações atrevidas? Não pode. Em outras palavras, como apontou João Telésforo em texto que faz perfeita dobradinha com o de Bruno, equivoca-se Elio Gaspari ao confundir Justiça com pacificação: O jornalista da Folha compartilha da perspectiva comum de que a solução justa é a que “pacifica” a questão, ainda que com prejuízos à parte mais fraca – na verdade, com o maior prejuízo possível que ela seja capaz de aceitar. Se a parte não aceita o “acordo” que se busca impor a ela, e como resposta recebe a violência, a culpa do conflito é dela!
É por isso que esse Poder precisa mentir. Como destacou meu amigo Hugo Albuquerque em um post memorável que está entre os melhores da história do Descurvo, essas mentiras são “consciente e oportunamente utilizada[s] pelo Poder”. Cada uma delas – e Hugo foi certeiro na compilação das dez “melhores”, ou seja, as mais cínicas – embute uma longa história que se repete a cada atrocidade contra os pobres em nossa história: a que justifica o massacre com argumentos legalistas (5), a que manipula a própria lógica legalista de classe (3), a que pura e simplesmente falseia a realidade da violência (1, 4), a que culpa as vítimas, atribuindo-lhes atos e atributos que estão disseminados por todo o corpo social, que não são exclusividade sua (6, 8), aquela a que recorrem os partidários da instância do poder público que é autora do massacre, culpando como autor justamente a instância que se omitiu (7), aquela a que recorrem os partidários da instância do poder público que se omitiu, isentando-se com o argumento de que nada podia ser feito nem dito (9), a que culpa as vítimas simplesmente por terem defendido o único que tinham, o único que os distinguia enquanto sujeitos sociais (2) e, finalmente, a que é a mais própria do Brasil, a que é a cara da nossa História, aquela que o Poder—em todas as suas instâncias—quer nos impor agora, na hora do luto (10).
Que essa mentira seja, como as outras, recusada. A luta—e não o conformismo, a desmemória, o cinismo e a servidão voluntária ao Poder—se impõe. E ela se impõe não porque tenhamos certeza de seu sucesso. Ela se impõe porque, hoje, não nos está dada a possibilidade de não lutar.
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