Por Washington Araujo
Reproduzido da Agência Carta Maior,
Tempos estranhos esses em que vivemos. Com uma imprensa sempre ávida
por escândalos de corrupção, roubalheira e malfeitos, eis que temos a
principal revista semanal de informações, Veja, editada pelo
Grupo Abril, abordando como principal tema de capa de suas quatro
últimas edições assuntos no mínimo amenos, para não dizer insossos do
ponto de vista do valor-notícia, da noticiabilidade.
Desde 29 de fevereiro de 2012, quando a Polícia Federal, em conjunto
com o Ministério Público Federal em Goiás e com apoio do Escritório de
Inteligência da Receita Federal, deflagrou a Operação Monte Carlo, tendo
por objetivo desarticular organização que explorava máquinas de
caça-níqueis no estado de Goiás, o Brasil que frequenta a grande
imprensa não fala de outra coisa: CPI do Cachoeira, gravações
comprometedoras envolvendo o senador Demóstenes Torres, o governador
goiano Marconi Perillo, a construtora Delta e uma penca de personagens
menores, deputados federais, delegados de polícia, arapongas,
funcionários públicos. E a cúpula da revista Veja em Brasília, especialmente o jornalista Policarpo Junior.
No rastro dos meliantes aquosos encontramos de tubarões a bagres.
Confidências de alcova, palavreado de quinta categoria recheado por
imagens escatológicas, tráfico de influência na modalidade “livre, leve e
solta”, somas vultosas entrando em várias contas e reduzindo a pó
reputações até bem pouco não apenas acima de qualquer suspeita como
também incensadas como próceres da moralidade pública, formidável
contraponto midiático “a tudo o que aí está”, e certeza de opinião
abalizada sobre todo e qualquer assunto que afete à sociedade brasileira
– da luta contra os malfeitos na máquina governamental central,
federal, até a defesa sempre insustentável da quimera de uma democracia
racial que jamais existiu no Brasil, mas que sempre encontrou abrigo nas
principais revistas e jornais do país.
Vitrine semanal
A operação Monte Carlo é como suntuoso banquete para 700 talheres.
Banquete inesperado e farto para todos os que se acreditam e
autodenominam “jornalistas investigativos”. A operação consiste no
cumprimento de 82 mandados judiciais, dos quais 37 mandados de busca e
apreensão, além de 35 mandados de prisão e 10 ordens de condução
coercitiva em cinco estados.
Não obstante a junção de tantos ingredientes e condimentos em uma mesma
vasilha que se leva ao fogo, fato é que nossa principal revista semanal
de informação – Veja –, decantada em verso e prosa como
detentora do jornalismo de mais elevada qualidade jornalística, guardiã
de tudo o que já se escreveu sobre ética, moral e bons costumes, pois
bem, o carro-chefe da Editora Abril não encontrou qualquer interesse
jornalístico no bojo da Monte Carlo, qualquer valor-notícia nas muitas
quedas da cachoeira de crimes, ilicitudes, ilegalidades e contravenções
que vêm sendo revelados à sociedade brasileira a cada dia e a cada hora.
Ao menos o assunto não chegou perto de merecer uma daquelas explosivas
capas da revista, sempre tão pródiga em brandir o cassetete da justiça e
da moral sobe qualquer sinal de fumaça de corrupção.
Observamos, com misto de perplexidade e desencanto as quatro últimas reportagens de capa da revista Veja. São elas:
1.Edição 2264, de 11/4/2012, capa com “Os filhos da
inovação”, tratando dos jovens brasileiros na “vanguarda da revolução
digital”. Se optasse por levar à capa uma bela foto do Mosteiro dos
Jerônimos e da Torre de Belém, em Lisboa, não faria grande diferença na
vida ordenada do sistema solar;
2.Edição 2265, de 18/4/2012, capa com “Mensalão – A
cortina de fumaça do PT para encobrir o maior escândalo de corrupção da
história do país”. É como se por trás da cortina brilhasse a questão de
fundo: “Por que abandonar nosso querido escândalo de estimação por outro
que... ainda nem disse a que veio?”;
3.Edição 2266, de 25/4/2012, capa com “Do alto tudo é
melhor”, tratando da relação entre altura das pessoas e sucesso na vida.
Se decidisse levar à capa uma milionésima imagem do Santo Sudário
talvez conseguisse maior interesse por parte de seus leitores. Ao menos,
as pessoas prejudicadas verticalmente, como nos ensina os politicamente
corretos a denominar as pessoas de baixa estatura, não se sentiriam
minimamente ofendidas com tamanha falta de assunto, ou melhor,
desfaçatez mesmo;
4.Edição 2267, de 2/5/2012, capa com “As lições das
chefonas”, tratando da ascensão das mulheres na vida profissional. Essa
reportagem de capa deve ter vencido por alguns míseros pontinhos o outro
tema a ser alçado à sua vitrine semanal: a vida e a obra de feminista e
compositora brasileira Chiquinha Gonzaga. Talvez fosse dedicado espaço
para a candente letra de “Abre Alas”.
Edição imperdível
Não precisa ser doutor honoris causa de Xique-Xique, no
interior baiano, para perceber que as quatro capas tentam desfazer esse
clima de mal-estar e vívido constrangimento que veio a lume com a
revelação de que dezenas e dezenas de ligações telefônicas legalmente
gravadas tinham como dialogantes o capo Carlinhos Cachoeira e o chefe da sucursal de Veja
em Brasília, Policarpo Junior. A própria revista não hesitou em ver no
teor das conversas, bem pouco jornalísticas por sinal, uma nova
modalidade de exercer as artes de um vibrante e dinâmico jornalismo
investigativo: jornalismo-criminoso, jornalismo-ao-arrepio-da-lei.
Chegam a ser patéticas as muitas investidas da revista visando dar
cores de legitimidade ao que nasceu de forma espúria, fruto de
delinquência a granel, reunindo em um mesmo affair contraventor
dissimulado, altas autoridades do Poder Legislativo e dublês de
empresários com escroques, sob a solene inércia de baluartes de nossa
grande imprensa, aquela que acredita poder debitar tudo, do lícito ao
ilícito, na conta da liberdade de expressão. Não causaria estranheza se
legiões de leitores da publicação ingressarem nos tribunais com ações
por perdas e danos, por terem comprado como fruto de trabalho
investigativo o que não passava de gravações ilegais de conversas
privadas, violação do direito humano comezinho à privacidade. Em melhor
português, arapongagens.
Mesmo para o leitor ingênuo, parente consanguíneo da velhinha de
Taubaté, algumas questões começam a ser formuladas e passam a exigir
respostas que não agridam o senso comum:
** Quem pautava quem? A revista pautava Cachoeira ou Cachoeira pautava a revista?
** Como discernir da vasta sequência de escândalos publicados, com
afinco, semana a semana, quais eram reais e quais eram pré-moldados,
fabricados sob medida para constranger governos, ministros, autarquias e
órgãos públicos?
** Não seria o caso de se proceder a uma prova dos noves, qual seja, submeter as matérias publicadas por Veja
com os áudios legalmente fornecidos pela Operação Monte Carlo,
relacionando os argumentos escritos com os contextos, as falas e as
estratégias criminosas abordadas na conversas do submundo de Carlinhos
Cachoeira?
** Desde quando tem sido este o expediente utilizado pela revista Veja
para influir na vida política e social do Brasil? Um jornalista pode
ser comparado a uma autoridade policial dentro de um Estado de direito? É
lídimo construir reportagens (e conspirações) de natureza política a
partir de informações obtidas de forma criminosa?
** Notícias plantadas, ardilosamente publicadas e tendo como origem
pessoas que se locupletam com vantagens indevidas e que fazem do crime
uma profissão, merecem livre e completo acesso aos meios de comunicação
em uma sociedade democrática?
** Estarão em pleno funcionamento no Brasil outras redes criminosas que
conseguem pautar órgãos de comunicação para atender aos seus
interesses, sempre escusos e inconfessáveis, e que ainda não foram
objeto das garras da lei?
Algumas dessas questões têm tudo para compor uma edição especial – e
imperdível – de qualquer revista de informação semanal que se preze.
Porque existem fronteiras que não podem nem devem ser rompidas.
***
[Washington Araújo é jornalista e escritor; mantém o blog http://www.cidadaodomundo.org]
Publicado no Observatório da Imprensa
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