Por Maurício Caleiro
A Espanha
quebrou, faliu. Este é o fato, a terrível realidade que se esconde por
detrás de uma operação discursiva que lança mão de termos amenos,
humanistas e solidários como “ajuda”, “resgate” e “operação de
salvamento”.
Trata-se,
na verdade, de uma intervenção na economia e na soberania espanholas,
para benefício do mercado financeiro e com duras consequências para a
população.
Rajoy questionado
Tendo
imposto suas demandas ao governo do conservador Mariano Rajoy sob sua
relutância apenas aparente, a batalha que os arautos do neoliberalismo
ora travam é de ordem discursiva: em primeiro lugar, trata-se de
convencer os espanhóis que é não apenas aceitável, mas para seu próprio
bem desejável que paguem, com carestia, desemprego, cortes nos salários,
nas aposentadorias e no acesso a saúde e educação – em suma, com o que
resta do Estado de bem-estar social à europeia – as dezenas (talvez
centenas) de bilhões de euros que serão utilizadas para tirar as
instituições financeiras do buraco por elas mesmas cavado.
A julgar
pelas reportagens na imprensa espanhola, agora está ficando claro para
muitos de seus ingênuos eleitores que Rajoy - que há dez dias declarou
taxativamente que não haveria resgate aos bancos - mentiu. E, a bem da
verdade, continua a fazê-lo, já que é lugar-comum entre economistas que
cem bilhões de euros são um mero paliativo, e que o setor financeiro,
com as cartas na mão, demandará de quatro a oito vezes esse valor para
cobrir seus rombos - com a imposição dos cortes sociais correspondentes.
Consequências psicológicas
“A
intervenção é um golpe psicológico que constitui um marco na história
de nossas relações com a Europa. Em um país onde a identidade nacional e
os sentimentos de autoestima coletiva têm estado sempre tão
estreitamente vinculados aos feitos alcançados no âmbito europeu, custa
crer que tenhamos chegado a este ponto. Entender como e por quê e o que
ocorrerá a partir de agora mostra-se imprescindível”, aquiesce uma voz favorável ao "resgate".
Desse
quadro decorre um segundo movimento da citada operação discursiva,
desta feita para salvaguardar o orgulho nacional, que a menção à
condição de quarta economia da Europa costuma alimentar. Nela pontifica,
de novo, a promoção do contorcionismo verbal à maneira do 1984, de Orwell, com a adoção de uma novilíngua em que a tragédia torna-se pacto social; a bancarrota, ajuste mercadológico; a humilhação à soberania nacional, solução negociada com os parceiros de bloco.
Nós,
latino-americanos, já vimos algumas vezes esse filme, porém em versões
em preto e branco, do final do século passado. Trata-se, com o perdão
pela redundância, de uma chanchada de má qualidade, protagonizada por
canastrões, com um roteiro que tem sérios problemas de verossimilhança
e, pior, não tem final feliz: os vilões vencem.
Espanha x Argentina
Essa
autorreferência ao nosso continente nos leva ao terceiro movimento da
estratégia discursiva neoliberal acima aludida, desta feita de caráter
eurocêntrico e, naturalmente, pró-mercado, facilmente identificável no
discurso da mídia brasileira relativo à crise espanhola: “Quando o
resgate era de pais da periferia, a mídia chamava de falência, quebra.
Quando é no centro: resgate, apoio, empréstimo. Ajuda”, resume o
professor Emir Sader, em seu Twitter.
Convido os(as) leitores(as) a compararem o tratamento que essa mesma mídia deu ao default argentino
– que se recusou a seguir as imposições do sistema financeiro
internacional - e o enfoque que ora dispensa à quebra da Espanha – que
segue à risca o que manda a Troika. Recomenda-se, ainda, daqui a algum
tempo, quando tivermos elementos sobre os desdobramentos da obediência
espanhola à banca, que também se leve em conta, nessa comparação, a
situação do país ibérico e a da Argentina – que, malgrado todas as
ameaças de danação eterna a que fatalmente estava condenada por ousar
enfrentar a cartolagem, tem apresentado, sob um governo de
centro-esquerda, um desempenho econômico superlativo em meio à crise
.
.
Confusão conceitual
A
persistência do neoliberalismo como modelo orientador das políticas
econômicas da Zona do Euro - agravadas por sua prescrição como antídoto
que só faz agravar sua maior crise, como se vê na Espanha - nos fornece a
medida do quanto a constituição de blocos econômicos transnacionais,
apregoada como imprescindível à sobrevivência na globalização, acabou
por constituir-se em um fator determinante na submissão dos estados
nacionais aos ditames do mercado financeiro.
No
âmago de tal problema está uma confusão conceitual, intencionalmente
inoculada pelos arautos do neoliberalismo quando da ascensão histórica
deste, ao longo dos anos 80, sob os os eflúvios de Thatcher e Reagan: a
concepção de globalização e neoliberalismo como termos indissociáveis
e, em larga medida, intercambiáveis, marcados por uma relação pela qual a
primeira, por seu caráter estruturante, imporia a adoção de políticas
econômicas nos moldes ditados pelo segundo, sob a ameaça de expulsão da
então chamada “nova ordem mundial” e decorrente aniquilamento do país
enquanto ente autônomo.
Essa
confusão e essa crença são um lugar-comum na reflexão teórica sobre o
período, levada a cabo inclusive por pensadores que continuam na linha
de frente da crítica socioeconômica. É notável, no entanto, que tanto
intelectuais brasileiros como Octávio Ianni e Milton Santos quanto uma
certa tendência do pensamento franco-europeu agrupada em torno do Le Monde Diplomatique tenham desde sempre, em sua maioria, recusado a aferrar-se ao determinismo teórico do período.
O retorno da soberania
Este,
embora falho, é até certo ponto compreensível, posto que tardiamente
desmentido factualmente. Pois, a rigor, a constatação de que a morte do
Estado nacional era uma balela e que havia possibilidade de as nações,
enquanto ente socioeconômico, sobreviverem – com crescimento, inclusão
social e um Estado fortalecido, atuante e que conservasse um bom grau de
independência a despeito da interdependência da economia global– só tem
lugar com a ascensão e o sucesso das administrações de Lula, Chávez,
Kirchner, Morales, Corea, entre outros - e, em alguns casos, de seus
sucessores.
Assim,
ainda que devamos ter muito claros a persistência insidiosa do poder
neoliberal sobre tais administrações e os limites e eventuais equívocos e
desacertos destas – como a insensibilidade do governo de Dilma Rousseff
para com as demandas do funcionalismo público, que ora fornece um
dentre tantos exemplos possíveis -, é preciso atentar com limpidez para
as conquistas e as possibilidades propiciadas pelo realinhamento
político-ideológico promovido pela democracia brasileira na última
década -e lutar para efetivá-las e ampliá-las.
O povo espanhol, por sua vez, já promete voltar a tomar as ruas e a Puerta del Sol, em protesto. Suerte.
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