Eu juro que achei que essa insanidade da Black Friday nunca
aportaria em terras tupiniquins. Talvez pela impossibilidade da tradução
direta do termo gerar algo que faça sentido por aqui. Ou pelo fato de
que, ao contrário do que acontece no Grande Irmão do Norte, não
comemoramos um Dia de Ação de Graças – feriado conectado com a
sexta-feira de grandes descontos – e só mandamos perus para a guilhotina
no Natal. No que pese eu preferir lombo e tender.
Informática, turismo, academias, seguros, ração para au-au,
cosméticos, eletro-eletrônicos, com mais de 75% de desconto, reunindo
cerca de 300 varejistas e suas lojas virtuais. Loucura, loucura,
loucura. Desconto é bom e deveria ocorrer em boa parte do ano. Limar
estoque? Melhor ainda.
Mas o fato é que tenho ouvido de pessoas queridas de que PRECISAM comprar algo nesta sexta.
- Mas você está precisando de algo?
- Não. Mas você viu os preços?!
É o capitalismo, estúpido! Não é demanda que gera oferta. Mas a publicidade ostensiva sobre a oferta que cria a demanda.
Comprar é importante, gira a economia, gera empregos, realiza
desejos, supre necessidades, compensa frustrações. Não estou defendendo
que vocês plantem capeba e pariparoba para fazer remédio, cultivem a
própria juta para confeccionar a roupa e entoem mantras em torno da
fogueira a fim de acordar o pequeno leprechau da floresta que reside
dentro de cada um ao invés de atirar nos miolos de algum zumbi doido no
seu PlayStation 3. Mas, antes de saírem à caça nesta sexta (alguns,
aliás, protagonizando cenas como as que ocorrem nos Estados Unidos: de
desespero, correndo atrás dos produtos, e de emoção, abraçando TVs),
reflitam.
Se está com aquele vazio difícil de preencher ou ficando
“transparente” para seus amigos e colegas, a solução é adquirir um
produto e, através dele, o pacote simbólico de cura e inserção que traz
consigo? Como já escrevi aqui antes, quem acha que a Coca-Cola, Apple ou
Fiat vendem refrigerantes, tecnologia e carros, respectivamente, está
enganado. Vendem estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de
ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas
de uma construção do que é bom e do que é ruim. Daí o problema. Porque
essa construção não é nossa, mas – não raras vezes – vem de cima para
baixo.
A busca pela felicidade passa cada vez mais pelo ato de comprar. E a
satisfação está disponível nas lojas a uma passada de cartão de
distância. Muitos de nós ficam tanto tempo trabalhando que tornam-se
compradores compulsivos de símbolos daquilo que não conseguiremos obter
por vivência direta. Em promoções como esta, em que a porteira está
aberta e o convite está feito, nem se fala. Através desses objetos,
enlatamos a felicidade – pronta para consumo, mas que dura pouco.
Porque, como os produtos que a representam, possui sua obsolescência
programada para dar, daqui a pouco, mais dinheiro a alguém.
O que é de fato “necessário”? A definição disso pode ser bastante
subjetiva, ainda mais que tornamos o excesso parte do dia a dia. É como
não saber mais o que é real e o que é fantasia ou, pior, não ter ideia
de como escolher entre o caminho irreal da felicidade e a via dura da
abstinência.
“Wall.e” é uma animação produzida pela Disney e a Pixar que conta a
história de um robozinho cuja missão é organizar o lixo em que se
transformou o planeta devido ao consumismo desenfreado dos habitantes e à
ganância de grandes corporações. No futuro, a Terra terá se
transformado em um lixão impossível de sustentar vida e os seres humanos
terão se mudado para uma nave espacial à espera de que os robôs
limpassem as coisas.
Na cadeira do cinema (sim, fui ver na época na tela grande – hehehe),
fiquei matutando que Wall.e seria um bom instrumento para discutir com
os mais novos a diferença entre consumir para viver e viver para
consumir. Mas, na saída, conversando com alguns amigos, veio uma
preocupação: será que os produtores teriam a pachorra de vender
quinquilharias sobre os personagens do filme? Da mesma forma que fazem
em outros casos, indo na contramão da história contada na tela?
Vale ressaltar que os brinquedos inspirados em filmes têm vida curta –
duram o suficiente até o próximo sucesso de bilheteria trazer novos
bonecos. Ou seja, dentro de pouco tempo viram lixo de plástico e ferro.
Tempos depois, passando por uma loja, vi meu pesadelo tornar-se
realidade quando me deparei com uma prateleira inteira de produtos do
filme. A vendedora me mostrou um Wall.e que funciona à corda e canta e
dança, um outro Wall.e para bebês (na verdade, para os pais dos bebês…)
Explicou que a versão de controle remoto havia acabado, tamanha a
procura. Afe.
Disso, abstraí que: a) Há pessoas que viram o filme e não entenderam a
mensagem; b) Há pessoas que viram o filme e não se importaram com a
mensagem; c) Sabendo, de antemão, que há milhões de pessoas nos grupos
“a” e “b”, as empresas produtoras do filme se aproveitam e lucram em
cima. Afinal de contas, campanhas contra o consumismo desenfreado e pela
proteção ao meio ambiente podem ser, quando superficiais, bons pacotes
fechados para o consumo imediato e o alívio rápido da consciência. Já
que a contradição é inerente ao capitalismo e à sociedade de consumo,
por que ter pudores ao explorar isso?
Dessa forma, o futuro desenhado pelo filme deixa de ser fantasia e
vai se tornando uma perigosa profecia autocumprida. Sextas-feiras como
esta só ajudam a catalisar o processo.
Diante disso, desejo a todos “boas compras”. E que nossos netos nos perdoem.
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