Por Marcel Frison
Em artigo
publicado no jornal ZH do dia 13/04/2012, o colunista David Coimbra,
remetendo-se à matéria jornalística relativa ao Presídio Central,
questiona o Governador Tarso Genro se ele não tem vergonha desta
situação. Depois discorre com a elegância literária que lhe é
peculiar sobre suas preocupações humanistas a respeito das
condições precárias em que vivem os apenados no sistema prisional
do RS. Segundo suas palavras: “O Estado que o senhor governa
confina seres humanos em masmorras onde fezes e urina escorrem pelas
paredes, onde dezenas de pessoas se amontoam em cubículos do tamanho
de um banheiro, mal havendo lugar para dormir no chão, onde a
sífilis, a hepatite e a AIDS são disseminadas através do estupro
...”
Interessante
que os sentimentos humanitários do colunista tem memória seletiva e
moral relativa. Ao deparar-se com o artigo, o leitor tem a nítida
impressão de que o Central foi fundado no dia 1º de janeiro de
2011, quando Tarso assumiu o Piratini, e já foi construído com
excrementos esvaindo-se pelas paredes. No dia 02/01/2011, ao chegarem
os primeiros ocupantes do Presídio, inaugurou-se também, como
prática cotidiana, o estupro entre os aprisionados.
A última
reforma do Presídio Central foi realizada pelo Governo Olívio, na
época a SUSEPE era dirigida por Airton Michels, atual, Secretário
Estadual de Segurança Pública. Aliás para rememorar, a gestão de
Michels, interrompeu o ciclo de crises e revoltas nos presídios
gaúchos que herdamos da era Britto.
Aquela
reforma atingiu 85% das instalações, porém com 08 anos de abandono
e descaso, dos Governos Rigotto e Yeda, o trabalho realizado foi
completamente perdido.
A
decadência do Central não foi a obra mais eloquente destes governos
na gestão do sistema prisional. Olívio e Michels entregaram o
sistema para Rigotto com um déficit de 2 mil vagas, Yeda entregou
para Tarso com um déficit de 10 mil vagas.
Esta é
uma das pontas do nebuloso iceberg gerado pela inoperância de
Rigotto e pela política de ajuste autodenominada Déficit Zero tão
propalada por Yeda e comemorada pela mídia em geral. O Zero no saldo
das contas públicas significou zero de investimentos em áreas
cruciais sob responsabilidade do Estado. Este Zero estoura numa
superlotação de 10 mil apenados que vivem miseravelmente nos nossos
presídios. O Zero gerou as escolas de lata, a enturmação, a falta
de professores e o fechamento de escolas. Quantos milhares de
soldados a criminalidade ganhou com esta política?
Seria o
Governo Yeda, um governo “sem-vergonha”? O colunista não aborda
esta questão, parece que ele não lembra, não sabe e não viu.
As
vergonhas do sistema prisional do RS foram, para ele, desnudadas
somente agora, e atônito, estupefato, indignado encontrou
imediatamente um culpado e uma solução.
O culpado
aparece explícito: “Governador Tarso Genro o senhor não tem
vergonha?”A solução é desenhada, digamos, de forma mais
comedida: “ Tempos atrás, surgiu a proposta de privatização
dos presídios. Houve todo tipo de argumentos humanitários contra a
ideia. Seriam bons argumentos, se os gestores do sistema, entre eles
o governador, sentissem vergonha pelo que é perpetrado contra esses
homens. Se movidos por essa vergonha, os gestores do sistema agissem
com urgência para impedir que o Estado continuasse a supliciar
homens sob sua tutela. Como ninguém sente vergonha, nem age, o
Estado tem a obrigação de desistir
desta tarefa e entregá-la para quem possa cumpri-la a contento...”
(grifos meus)
Ou seja,
a saída é a privatização, o anacrônico discurso neoliberal volta
à tona em meio as brumas de uma prosa rebuscada.
A velha e
carcomida cantilena que reduz o setor público a um pântano de
ineficiência e incompetência, ante a apologia da iniciativa privada
donde reluz uma eficácia infinita e se constitui como panaceia para
todos os nossos males.
Na
verdade uma falsa dicotomia derivada de uma análise tortuosa que
abstrai o passado, desconsidera as circunstâncias e busca comparar
atividades de naturezas completamente distintas, a fim de sustentar
uma compreensão, meramente, ideológica.
Tudo bem
se isto não estivesse envolto numa suposta isenção,
incansavelmente, reivindicada pelos veículos de comunicação do
grupo em que trabalha Coimbra e constituída como uma fortaleza que
justifica toda a sorte de ataques na disputa política no Rio Grande.
Se esta
compreensão ideológica não bebesse da mesma vertente que defende a
criminalização dos movimentos sociais, a penalização de crianças
e adolescentes, o alongamento dos períodos de reclusão, a pena de
morte, o armamento da população, e pior, transforma,
cotidianamente, a luta pela defesa dos direitos humanos num fantasma
que opera subterraneamente a proteção de delinquentes e bandidos.
Na
verdade, o ataque a Tarso não é por sua condição de Governador,
como o artigo em tela pode sugerir, mas por que em grande medida sua
trajetória política voltou-se a promover uma gestão sobre a
segurança pública antagônica daquilo que os setores conservadores
sustentam. Uma política de segurança pública voltada à prevenção,
à proteção das comunidades, à repressão eficiente sobre a
criminalidade e com profundo respeito aos direitos humanos.
É
evidente que a situação do nosso sistema prisional é caótica, que
a superação dos problemas representa um desafio gigantesco e será
necessário alcançar recursos vultosos e um trabalho intenso para a
sua recuperação. Um trabalho que já iniciou e ao seu tempo trará
resultados consistentes.
O que
certamente não contribuirá para a solução é tornar o problema um
negócio. A equação sugerida por Coimbra “...desistir desta
tarefa e entregá-la para quem possa cumpri-la a contento...”não
existe, salvo como uma retórica cínica. O Estado não pode abrir
mão da tutela daqueles que pune. Nenhuma empresa terá a
prerrogativa de restringir a liberdade ou garantir a segurança nas
prisões.
Então do
que estamos tratando? Não seria o sonho neoliberal, muitas vezes,
acalentado pelo imaginário de filmes de ficção, de modernas e
assépticas prisões sustentadas pela exploração da mão de obra lá
reclusa? Sem possibilidade de escolha e sob o garrote de um
proprietário. Uma “evolução” do atual “suplício medieval”
para uma escravidão pós-moderna. De uma vergonha para outra, a
primeira perdulária para todos, a segunda lucrativa para poucos.
O dilema
de enfrentar a criminalidade e as suas consequências, numa sociedade
profundamente desigual como a nossa, nos exigirá um enorme esforço
conjunto, um debate honesto e profundo, que nos ilumine o caminho
para as soluções. Será necessário sim, encarar todas as nossas
vergonhas.
Inclusive,
na toada de David Coimbra, aquela de convivermos com setores da
imprensa que tratam assuntos tão delicados e complexos com tamanha
superficialidade; que demonstram ávida necessidade de atrelar-se a
interesses privados; que se escondem sob o manto de uma
imparcialidade autoconcedida e de seu poderio midiático para
produzir factoides que lhes incrementam as vendas e são uteis na
disputa ideológica a que se dedicam sem tréguas.
Marcel Frison é membro
do Diretório Nacional do PT
Via Tomando na Cuia
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