sexta-feira, 20 de abril de 2012

Vergonhas

  Por Marcel Frison


Em artigo publicado no jornal ZH do dia 13/04/2012, o colunista David Coimbra, remetendo-se à matéria jornalística relativa ao Presídio Central, questiona o Governador Tarso Genro se ele não tem vergonha desta situação. Depois discorre com a elegância literária que lhe é peculiar sobre suas preocupações humanistas a respeito das condições precárias em que vivem os apenados no sistema prisional do RS. Segundo suas palavras: “O Estado que o senhor governa confina seres humanos em masmorras onde fezes e urina escorrem pelas paredes, onde dezenas de pessoas se amontoam em cubículos do tamanho de um banheiro, mal havendo lugar para dormir no chão, onde a sífilis, a hepatite e a AIDS são disseminadas através do estupro ...”
Interessante que os sentimentos humanitários do colunista tem memória seletiva e moral relativa. Ao deparar-se com o artigo, o leitor tem a nítida impressão de que o Central foi fundado no dia 1º de janeiro de 2011, quando Tarso assumiu o Piratini, e já foi construído com excrementos esvaindo-se pelas paredes. No dia 02/01/2011, ao chegarem os primeiros ocupantes do Presídio, inaugurou-se também, como prática cotidiana, o estupro entre os aprisionados. 
A última reforma do Presídio Central foi realizada pelo Governo Olívio, na época a SUSEPE era dirigida por Airton Michels, atual, Secretário Estadual de Segurança Pública. Aliás para rememorar, a gestão de Michels, interrompeu o ciclo de crises e revoltas nos presídios gaúchos que herdamos da era Britto. 
Aquela reforma atingiu 85% das instalações, porém com 08 anos de abandono e descaso, dos Governos Rigotto e Yeda, o trabalho realizado foi completamente perdido. 
A decadência do Central não foi a obra mais eloquente destes governos na gestão do sistema prisional. Olívio e Michels entregaram o sistema para Rigotto com um déficit de 2 mil vagas, Yeda entregou para Tarso com um déficit de 10 mil vagas. 
Esta é uma das pontas do nebuloso iceberg gerado pela inoperância de Rigotto e pela política de ajuste autodenominada Déficit Zero tão propalada por Yeda e comemorada pela mídia em geral. O Zero no saldo das contas públicas significou zero de investimentos em áreas cruciais sob responsabilidade do Estado. Este Zero estoura numa superlotação de 10 mil apenados que vivem miseravelmente nos nossos presídios. O Zero gerou as escolas de lata, a enturmação, a falta de professores e o fechamento de escolas. Quantos milhares de soldados a criminalidade ganhou com esta política? 
Seria o Governo Yeda, um governo “sem-vergonha”? O colunista não aborda esta questão, parece que ele não lembra, não sabe e não viu. 
As vergonhas do sistema prisional do RS foram, para ele, desnudadas somente agora, e atônito, estupefato, indignado encontrou imediatamente um culpado e uma solução.
O culpado aparece explícito: “Governador Tarso Genro o senhor não tem vergonha?”A solução é desenhada, digamos, de forma mais comedida: “ Tempos atrás, surgiu a proposta de privatização dos presídios. Houve todo tipo de argumentos humanitários contra a ideia. Seriam bons argumentos, se os gestores do sistema, entre eles o governador, sentissem vergonha pelo que é perpetrado contra esses homens. Se movidos por essa vergonha, os gestores do sistema agissem com urgência para impedir que o Estado continuasse a supliciar homens sob sua tutela. Como ninguém sente vergonha, nem age, o Estado tem a obrigação de desistir desta tarefa e entregá-la para quem possa cumpri-la a contento...” (grifos meus)
Ou seja, a saída é a privatização, o anacrônico discurso neoliberal volta à tona em meio as brumas de uma prosa rebuscada. 
A velha e carcomida cantilena que reduz o setor público a um pântano de ineficiência e incompetência, ante a apologia da iniciativa privada donde reluz uma eficácia infinita e se constitui como panaceia para todos os nossos males.
Na verdade uma falsa dicotomia derivada de uma análise tortuosa que abstrai o passado, desconsidera as circunstâncias e busca comparar atividades de naturezas completamente distintas, a fim de sustentar uma compreensão, meramente, ideológica. 
Tudo bem se isto não estivesse envolto numa suposta isenção, incansavelmente, reivindicada pelos veículos de comunicação do grupo em que trabalha Coimbra e constituída como uma fortaleza que justifica toda a sorte de ataques na disputa política no Rio Grande. 
Se esta compreensão ideológica não bebesse da mesma vertente que defende a criminalização dos movimentos sociais, a penalização de crianças e adolescentes, o alongamento dos períodos de reclusão, a pena de morte, o armamento da população, e pior, transforma, cotidianamente, a luta pela defesa dos direitos humanos num fantasma que opera subterraneamente a proteção de delinquentes e bandidos.
Na verdade, o ataque a Tarso não é por sua condição de Governador, como o artigo em tela pode sugerir, mas por que em grande medida sua trajetória política voltou-se a promover uma gestão sobre a segurança pública antagônica daquilo que os setores conservadores sustentam. Uma política de segurança pública voltada à prevenção, à proteção das comunidades, à repressão eficiente sobre a criminalidade e com profundo respeito aos direitos humanos.
É evidente que a situação do nosso sistema prisional é caótica, que a superação dos problemas representa um desafio gigantesco e será necessário alcançar recursos vultosos e um trabalho intenso para a sua recuperação. Um trabalho que já iniciou e ao seu tempo trará resultados consistentes. 
O que certamente não contribuirá para a solução é tornar o problema um negócio. A equação sugerida por Coimbra “...desistir desta tarefa e entregá-la para quem possa cumpri-la a contento...”não existe, salvo como uma retórica cínica. O Estado não pode abrir mão da tutela daqueles que pune. Nenhuma empresa terá a prerrogativa de restringir a liberdade ou garantir a segurança nas prisões.
Então do que estamos tratando? Não seria o sonho neoliberal, muitas vezes, acalentado pelo imaginário de filmes de ficção, de modernas e assépticas prisões sustentadas pela exploração da mão de obra lá reclusa? Sem possibilidade de escolha e sob o garrote de um proprietário. Uma “evolução” do atual “suplício medieval” para uma escravidão pós-moderna. De uma vergonha para outra, a primeira perdulária para todos, a segunda lucrativa para poucos. 
O dilema de enfrentar a criminalidade e as suas consequências, numa sociedade profundamente desigual como a nossa, nos exigirá um enorme esforço conjunto, um debate honesto e profundo, que nos ilumine o caminho para as soluções. Será necessário sim, encarar todas as nossas vergonhas.
Inclusive, na toada de David Coimbra, aquela de convivermos com setores da imprensa que tratam assuntos tão delicados e complexos com tamanha superficialidade; que demonstram ávida necessidade de atrelar-se a interesses privados; que se escondem sob o manto de uma imparcialidade autoconcedida e de seu poderio midiático para produzir factoides que lhes incrementam as vendas e são uteis na disputa ideológica a que se dedicam sem tréguas. 
 
 Marcel Frison é membro do Diretório Nacional do PT
 

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