quinta-feira, 5 de julho de 2012

Trinta Anos esta Tarde



Tenho a mania, às vezes, de cultivar memórias de fatos que deviam ser absolutamente banais, mas que por alguma razão não vão embora, ficam aqui para sempre. Naquela manhã, por exemplo, não havia pão de coco na padaria a duas quadras da minha casa. Eu gostava de pão de coco, uma espécie de bisnaga de massa meio doce, coberta de coco queimado. Era melhor do que pão de mel – a mesma massa coberta com mel ficava com uma casca meio desagradável. Todavia, naquela manhã tive que me conformar com pão francês, os 200 gramas que ingeria de manhã e de tarde quando o padrão ainda não eram os pãezinhos.
Os jogos da Copa de 82 aconteciam ao meio-dia, às 4 ou às 6 da tarde. O Brasil disputou pelo menos um jogo em cada horário. Na primeira fase, quando os jogos eram à tarde, cada vitória foi comemorada com o desfile do bloco da rua. Nos reuníamos, apareciam os instrumentos e as pessoas saíam bebendo e comemorando. O trajeto era curto, apenas uma volta completa em dois quarteirões, a subida da ladeira da Eça de Queiroz e de volta ao ponto inicial, passando por baixo de dezenas de milhares de bandeirinhas, muros e calçadas pintados.
Jamais voltei a ver uma cidade, qualquer uma, numa Copa do Mundo, qualquer uma, enfeitada como o Rio de Janeiro em 82. Por meses os enfeites nunca pareciam suficientes. Você saía, andava pelos outros bairros, olhava as outras ruas, mais bonitas do que a sua, e voltava com a sensação de humilhação. Então fazia uma nova vaquinha, pintava mais um muro, mais um trecho do meio da rua, fazia mais um pedágio para pedir ajuda aos estranhos. A Globo tentou controlar a coisa, criando um concurso para a rua mais enfeitada, mas ninguém deu bola. Não era para aparecer na TV. Por anos, até a metade da década, pelo menos, tudo aquilo ficou pintado. Naranjito, Zico, Falcão, Éder, Sócrates. Então, saíamos de novo do bairro, todo mundo tinha feito o mesmo. Todos os bairros. Tudo recomeçava.
Havia pelo menos três boas músicas que louvavam aquela seleção, cantadas por Luiz Ayrão (a minha favorita), Moraes Moreira (um frevo) e a mais popular, entoada por Junior, o lateral da seleção, hoje comentarista, que dizia “voa, canarinho, voa…” Jogadores às vezes se arriscavam a cantar e gravar. Sócrates gravou um compacto. Pelé também. Zico fez um dueto com Fagner. O resultado invariavelmente era sofrível, mas a música de Junior era boa.
Nos dias em que os jogos eram à tarde, nós, os garotos, bebíamos vinho numa caixa de 1 litro achando aquilo muito avançado. Todo mundo deixava o trabalho antes da hora, o que engrossva a o bloco na hora da festa. Mas na segunda fase as partidas do Brasil passaram para o horário de meio-dia. O clima ficou diferente. Ninguém chegava cedo do trabalho, só fazia uma pausa durante o experiente para ver o jogo e depois continuava a trabalhar. Após a vitória contra a Argentina, o bloco não saiu por falta de partitipntes. Acabamos desistindo e resolvendo jogar futebol.
Hoje se fala no choque. Vemos aqueles gols maravilhosos e pensamos em exibições de gala ao longo da Copa, mas a verdade é que tudo se passou de um jeito meio estranho. A União Soviética mereceu vencer na estreia. Viramos com dois golaços no fim, mas o Brasil não jogou bem. Contra Escócia e Irlanda do Norte, vitórias normais contra times muito fracos. Mas então veio a Argentina e o 3 a 1 brasileiro, ainda mais considerando os 2 a 1 sem brilho da Itália sobre os mesmos argentinos e, principalmente, aquela primeira fase ridícula deles – três empates, classificação porque tinham marcado 1 gol -, deram a sensação de que: 1) começara finalmente a arrancada e 2) o jogo contra a Itália era só uma burocracia a cumprir. Já avaliávamos os riscos de enfrentar a Polônia pela terceira Copa seguida. A racional Polônia de Boniek e Lato.
Assim, no dia 5 de julho, aos 15 anos, ao meio-dia, eu estava sozinho, mas confiante. Minha mãe resolveu visitar minhas tias. Lembro que comi o último pedaço de pão de coco olhando a vinheta da Globo, que fazia a câmera mergulhar de fora do planeta alucinadamente na direção ao chão até o estádio e então chegava ao meio de campo, onde havia uma bola. Parece que aquele dia ficou guardado inteiro, apesar de formado por dezenas de momentos que só possuem importância no contexto de que fazem parte de algo. Lembro que fazia sol, era um dia bonto. E de cada minuto daquele jogo. Do gol do Paolo Rossi. Do gol do Sócrates. Daquele passe completamente sem sentido de Cerezo para outro gol do Paolo Rossi. Da camisa rasgada do Zico que aquele juiz canalha não viu. De ter batido a mão com tanta força na mesa quando Falcão fez 2 a 2 que o osso doeu. Da cabeçada do Sócrates que o Zoff buscou em cima da linha quando já estava 3 a 2.
Que fechei a janela porque fazia sol e que um dia bonito era um sacrilégio.
Que, como jamais voltaria a ver em qualquer outra derrota brasileira, de repente todo mundo perdeu a vontade de sair de casa.
Que à noite, no “Viva o Gordo”, o personagem Zé da Galera, que encerrava sempre o esquete dizendo “Pra frente, Brasil”, dessa vez disse “Pra casa, Brasil”.
O mais sem sentido, ridículo, trágico, é que o Brasil não jogou mal. Com o tempo, se criou a lenda de que Batista devia ter sido escalado no lugar de Cerezo, que devíamos ter sido cautelosos, que Isidoro devia ser titular no lugar de Serginho, procurando explicações onde não havia. Esse é o legado horroroso daquele dia: tanta gente se recusando a entender que simplesmente existe, no futebol e na vida, o dia de perder. O Brasil havia mastigado a Itália nas Copas anteriores sendo Brasil, um dia perderia.
Mas desde então se deixou amedrontar por aquela derrota. A altivez morreu ali. O futebol brasileiro saiu menor daquela decepção. A covardia travestida de tática, o debate imbecil entre vencer ou jogar bonito, tudo nasceu naquele dia em que, às duas da tarde, finalmente saí de casa levando minha bola dente-de-leite para encontrar meus amigos, tão arrasados como eu. Mas garotos são assim. Falamos um pouco do jogo e então montamos dois times no meio da rua. Jogamos com raiva, comemorando gols como se valessem alguma coisa.
Hoje entendo que naquele dia virei um verdadeiro fã de futebol. Se futebol tem alguma grandeza, se manifesta em jogos como os de Sarriá, 5 de julho de 82. São os dias em que não se trata mais de um jogo. No meu caso, lembro ainda da sensação de que algo estava sendo descoberto com relação à vida, algo que levaria muito tempo até ser processado totalmente e que só quando o fizesse saberia lhe dar um nome: desilusão.
Também foi preciso muito tempo para entender porque aquela derrota doeu tanto em todo mundo. O sentido de tantas ruas enfeitadas e da profusão de músicas. Aqueles caras não só eram craques. Os campeões que vieram depois, no tetra e no penta, podem ter sido quase tão bons, podem ter vencido, mas são só grandes jogadores. Os de 82, quase todos, eram bons pais, bons profissionais, leais no jogo e na vida, bons cidadãos, ídolos, não celebridades. Os de 82 também eram um norte moral. Deus, como mereciam ter vencido…

Alexandre Rodrigues no Impedimento

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