Tenho a mania, às vezes, de cultivar memórias de fatos que deviam ser
absolutamente banais, mas que por alguma razão não vão embora, ficam
aqui para sempre. Naquela manhã, por exemplo, não havia pão de coco na
padaria a duas quadras da minha casa. Eu gostava de pão de coco, uma
espécie de bisnaga de massa meio doce, coberta de coco queimado. Era
melhor do que pão de mel – a mesma massa coberta com mel ficava com uma
casca meio desagradável. Todavia, naquela manhã tive que me conformar
com pão francês, os 200 gramas que ingeria de manhã e de tarde quando o
padrão ainda não eram os pãezinhos.
Os jogos da Copa de 82 aconteciam ao meio-dia, às 4 ou às 6 da tarde.
O Brasil disputou pelo menos um jogo em cada horário. Na primeira fase,
quando os jogos eram à tarde, cada vitória foi comemorada com o desfile
do bloco da rua. Nos reuníamos, apareciam os instrumentos e as pessoas
saíam bebendo e comemorando. O trajeto era curto, apenas uma volta
completa em dois quarteirões, a subida da ladeira da Eça de Queiroz e de
volta ao ponto inicial, passando por baixo de dezenas de milhares de
bandeirinhas, muros e calçadas pintados.
Jamais voltei a ver uma cidade, qualquer uma, numa Copa do Mundo,
qualquer uma, enfeitada como o Rio de Janeiro em 82. Por meses os
enfeites nunca pareciam suficientes. Você saía, andava pelos outros
bairros, olhava as outras ruas, mais bonitas do que a sua, e voltava com
a sensação de humilhação. Então fazia uma nova vaquinha, pintava mais
um muro, mais um trecho do meio da rua, fazia mais um pedágio para pedir
ajuda aos estranhos. A Globo tentou controlar a coisa, criando um
concurso para a rua mais enfeitada, mas ninguém deu bola. Não era para
aparecer na TV. Por anos, até a metade da década, pelo menos, tudo
aquilo ficou pintado. Naranjito, Zico, Falcão, Éder, Sócrates. Então,
saíamos de novo do bairro, todo mundo tinha feito o mesmo. Todos os
bairros. Tudo recomeçava.
Havia pelo menos três boas músicas que louvavam aquela seleção,
cantadas por Luiz Ayrão (a minha favorita), Moraes Moreira (um frevo) e a
mais popular, entoada por Junior, o lateral da seleção, hoje
comentarista, que dizia “voa, canarinho, voa…” Jogadores às vezes se
arriscavam a cantar e gravar. Sócrates gravou um compacto. Pelé também.
Zico fez um dueto com Fagner. O resultado invariavelmente era sofrível,
mas a música de Junior era boa.
Nos dias em que os jogos eram à tarde, nós, os garotos, bebíamos
vinho numa caixa de 1 litro achando aquilo muito avançado. Todo mundo
deixava o trabalho antes da hora, o que engrossva a o bloco na hora da
festa. Mas na segunda fase as partidas do Brasil passaram para o horário
de meio-dia. O clima ficou diferente. Ninguém chegava cedo do trabalho,
só fazia uma pausa durante o experiente para ver o jogo e depois
continuava a trabalhar. Após a vitória contra a Argentina, o bloco não
saiu por falta de partitipntes. Acabamos desistindo e resolvendo jogar
futebol.
Hoje se fala no choque. Vemos aqueles gols maravilhosos e pensamos em
exibições de gala ao longo da Copa, mas a verdade é que tudo se passou
de um jeito meio estranho. A União Soviética mereceu vencer na estreia.
Viramos com dois golaços no fim, mas o Brasil não jogou bem. Contra
Escócia e Irlanda do Norte, vitórias normais contra times muito fracos.
Mas então veio a Argentina e o 3 a 1 brasileiro, ainda mais considerando
os 2 a 1 sem brilho da Itália sobre os mesmos argentinos e,
principalmente, aquela primeira fase ridícula deles – três empates,
classificação porque tinham marcado 1 gol -, deram a sensação de que: 1)
começara finalmente a arrancada e 2) o jogo contra a Itália era só uma
burocracia a cumprir. Já avaliávamos os riscos de enfrentar a Polônia
pela terceira Copa seguida. A racional Polônia de Boniek e Lato.
Assim, no dia 5 de julho, aos 15 anos, ao meio-dia, eu estava
sozinho, mas confiante. Minha mãe resolveu visitar minhas tias. Lembro
que comi o último pedaço de pão de coco olhando a vinheta da Globo, que
fazia a câmera mergulhar de fora do planeta alucinadamente na direção ao
chão até o estádio e então chegava ao meio de campo, onde havia uma
bola. Parece que aquele dia ficou guardado inteiro, apesar de formado
por dezenas de momentos que só possuem importância no contexto de que
fazem parte de algo. Lembro que fazia sol, era um dia bonto. E de cada
minuto daquele jogo. Do gol do Paolo Rossi. Do gol do Sócrates. Daquele
passe completamente sem sentido de Cerezo para outro gol do Paolo Rossi.
Da camisa rasgada do Zico que aquele juiz canalha não viu. De ter
batido a mão com tanta força na mesa quando Falcão fez 2 a 2 que o osso
doeu. Da cabeçada do Sócrates que o Zoff buscou em cima da linha quando
já estava 3 a 2.
Que fechei a janela porque fazia sol e que um dia bonito era um sacrilégio.
Que, como jamais voltaria a ver em qualquer outra derrota brasileira, de repente todo mundo perdeu a vontade de sair de casa.
Que à noite, no “Viva o Gordo”, o personagem Zé da Galera, que
encerrava sempre o esquete dizendo “Pra frente, Brasil”, dessa vez disse
“Pra casa, Brasil”.
O mais sem sentido, ridículo, trágico, é que o Brasil não jogou mal.
Com o tempo, se criou a lenda de que Batista devia ter sido escalado no
lugar de Cerezo, que devíamos ter sido cautelosos, que Isidoro devia ser
titular no lugar de Serginho, procurando explicações onde não havia.
Esse é o legado horroroso daquele dia: tanta gente se recusando a
entender que simplesmente existe, no futebol e na vida, o dia de perder.
O Brasil havia mastigado a Itália nas Copas anteriores sendo Brasil, um
dia perderia.
Mas desde então se deixou amedrontar por aquela derrota. A altivez
morreu ali. O futebol brasileiro saiu menor daquela decepção. A covardia
travestida de tática, o debate imbecil entre vencer ou jogar bonito,
tudo nasceu naquele dia em que, às duas da tarde, finalmente saí de casa
levando minha bola dente-de-leite para encontrar meus amigos, tão
arrasados como eu. Mas garotos são assim. Falamos um pouco do jogo e
então montamos dois times no meio da rua. Jogamos com raiva, comemorando
gols como se valessem alguma coisa.
Hoje entendo que naquele dia virei um verdadeiro fã de futebol. Se
futebol tem alguma grandeza, se manifesta em jogos como os de Sarriá, 5
de julho de 82. São os dias em que não se trata mais de um jogo. No meu
caso, lembro ainda da sensação de que algo estava sendo descoberto com
relação à vida, algo que levaria muito tempo até ser processado
totalmente e que só quando o fizesse saberia lhe dar um nome: desilusão.
Também foi preciso muito tempo para entender porque aquela derrota
doeu tanto em todo mundo. O sentido de tantas ruas enfeitadas e da
profusão de músicas. Aqueles caras não só eram craques. Os campeões que
vieram depois, no tetra e no penta, podem ter sido quase tão bons, podem
ter vencido, mas são só grandes jogadores. Os de 82, quase todos, eram
bons pais, bons profissionais, leais no jogo e na vida, bons cidadãos,
ídolos, não celebridades. Os de 82 também eram um norte moral. Deus,
como mereciam ter vencido…
Alexandre Rodrigues no Impedimento
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