domingo, 25 de outubro de 2009

Moral e Política

"Ser moral é cuidar do seu dever. Ser moralizador é cuidar do dever dos outros”.
André Comte-Sponville, O Capitalismo é moral?

Encontrei Flavio Koutzi, meu ex-deputado estadual, numa livraria. Conversa infelizmente curta, mas suficiente para que sua inteligência, comentando aquilo que genericamente definimos como “o jeito que a coisa vai”, chegasse ao centro do assunto: “a moral não substitui a política”.

É claro que não. Recomendei a ele o extraordinário livro de André Comte-Sponville, “O capitalismo é moral?” (Martins Fontes, 2005), que trata disso:

“Eu dizia que vinte anos atrás a política era tudo e que uma boa política nos parecia a única moral necessária. Para muitos jovens de hoje a moral é que é tudo, e uma boa moral lhes parece uma política amplamente suficiente. Duas gerações, dois erros. (...) A moral e a política são duas coisas diferentes, ambas necessárias, mas que não podem ser confundidas sem comprometer o que cada uma delas tem de essencial. Necessitamos das duas, e da diferença das duas! Necessitamos de uma moral que não se reduza a uma política, mas necessitamos também de uma política que não se reduza a uma moral”.

Já me incomodei o suficiente por ser a única pessoa no país que não entende a fúria contra o nepotismo (1), este moralismo inócuo que produziu dezenas de leis bizarras que se baseiam no fato de que é moralmente aceitável empregar o vizinho, a amante ou o colega de biriba (não-parentes), mas é moralmente inaceitável empregar a prima, o filho ou o tio (parentes). A mim, e parece que só a mim, parece que o importante seria saber se é mesmo necessário contratar alguém, se este cargo não pode ser preenchido por um funcionário de carreira, admitido por concurso ou tem que ser mesmo um cargo de confiança, se o contratado trabalha mesmo, cumpre horário, tem produtividade, recebe um salário justo, enfim, tudo isso que parece não interessar a ninguém, o importante mesmo é não ser parente.

O engraçado é que essa barafunda de leis anti-nepotistas, que custaram uma grana e não economizaram um centavo, não foi eficiente para apanhar com a boca na botija o articulista da Folha de São Paulo, José Sarney, em suas constrangedoras conversas familiares, reveladas pelo jornal concorrente, O Estado de São Paulo. Infelizmente, namorado de neta não é parente, Sarney não fez nada de ilegal. Ao contrário do líder do PSDB, Artur Virgílio, cujo funcionário, que não era seu parente, estudou cinema na Europa por mais de um ano, sendo pago por nós, via salário do Senado.

Aqueles a quem Comte-Sponville chama de “canalhas moralizadores” andam por todo lado, da esquerda à direita. A maior parte anda pela mídia, contando tudo que lhe informam sobre Sarney e nada do que sabem sobre Quércia, tudo sobre Dilma e nada sobre Serra. (Só o que sei sobre as idéias do líder de todas as pesquisas na sucessão presidencial é que ele pede que não fumem, no que faz muito bem. A oposição poderia incluir em seu programa de governo uma lei que obrigue a todos que desliguem seus celulares em shows e palestras, tenho certeza que a medida receberia grande apoio, embora não tenha, talvez, o mesmo impacto que a queda do desemprego pela metade, o salário mínimo quadruplicado, o pré-sal ou a transposição do São Francisco).

Na onda moralizante que o udenismo midiático impôs a sociedade brasileira, desinformada pelo hábito de só ver tevê e ler manchetes e sedenta por explicações rápidas e simples sobre assuntos muito complexos (“Em 30 segundos, quais os crimes cometidos pelos donos do dinheiro da conta Tiger Eye?”), o telefonema de Sarney sobre o emprego do namorado da neta torna-se a passagem do Rubicão, enquanto os bilhões de dólares em revoada pelo Caribe são tratados como “tecnicalidades”, relegadas à página oito.

A imprensa defende, com toda a razão, o sigilo de suas fontes de informação. O que não sabíamos, nós, leitores, é que esta regra valia também para as fontes que mentiam, e que o jornalista sabia que mentiam. O jornal sabe que publicou uma grosseira fraude, a suposta “ficha de Dilma”, na capa de sua edição dominical, mas insiste na possível veracidade da falcatrua apelando ao nonsense: “Não se pode afirmar se uma imagem foi ou não criada digitalmente sem que seja possível examinar o original de papel”. Não é lindo? Como diria o Groucho, “Só vou acreditar que ele morreu se ele me disser isso pessoalmente!”

A imprensa, que repercute o que quer e quando quer, esquece rapidamente o que lhe interessa esquecer. Afinal, de quem foi a idéia de achar o dia 9 de outubro anotado na agenda de Lina Vieira como a data do encontro com Dilma? O que houve com a informação da reunião do dia 19 de dezembro, que levou Elio Gaspari a dizer, que eu saiba sem nunca ter se desculpado, que Dilma tinha “uma relação agreste com a verdade”?

Leio a manchete de capa da edição de domingo da Folha:

“Lina afirma ter achado agenda que traz reunião com ministra”

Texto, na capa do jornal:

"A ex-secretária da receita federal Lina Vieira diz ter achado a agenda com o registro da reunião com Dilma Roussef no qual a ministra da Casa Civil teria pedido para “agilizar” investigação contra a empresa da família do senador José Sarney. Na primeira linha da página de 9 de outubro de 2008, há uma anotação sobre o compromisso. O Gabinete de Segurança Institucional diz haver registro da ida de Lina ao Planalto naquele dia. Dilma afirma que o encontro não ocorreu."

Este texto é um exemplo perfeito para a compreensão do atual estilo na antiga imprensa, que anda numa relação nada agreste com a mentira. Na manchete da capa: “Lina afirma ter achado...”. No texto: “Lina Vieira diz ter achado...” Perguntas do leitor: afirma a quem? Diz a quem? Lina Vieira foi ouvida pelo jornal? Lê-se imaginando-se que sim, embora os textos não deixem claro. E logo a agenda que o jornal afirma que Lina “afirma ter encontrado” vira “o documento” que “reforça o relato que Lina fez à Folha...” e não se fala mais nisso.

No texto: “O Gabinete de Segurança Institucional diz haver registro da ida de Lina ao Planalto naquele dia (9 de outubro). Dilma afirma que o encontro não ocorreu”.

Aqui, a síntese do estilo udenista: uma pequena dose de mentira, uma grande dose se manipulação, a esperança de que o leitor não esteja prestando muita atenção aos detalhes e não seja muito esperto, algumas omissões e um elevado grau de cinismo.

O texto apresenta como aval ao furo de reportagem da Folha a informação de que “O Gabinete de Segurança Institucional diz haver registro...”. O fato é que o encontro de Lina com Dilma no dia 9 de outubro foi tornado público pelo governo, e faz muito tempo. Como nos sonetos parnasianos, tudo é feito em busca da chave de ouro, a frase que fecha o texto e que, espera-se, repercuta nas barbearias e salões da corte: “Dilma afirma que o encontro não ocorreu”. Logo, Dilma mente.

Qual encontro? O do dia 9? Quem afirmou, publicamente, que o encontro do dia 9 de outubro ocorreu foi o governo, e faz tempo. Lina, na CPI, confirma que ocorreu, lembra do encontro, comenta o assunto tratado. O texto da Folha, intencionalmente (“Olhe, nada nas mangas!”) mistura um encontro que houve e que todos sabem que houve, com o suposto encontro – outro encontro, o que Dilma nega ter havido. O suposto encontro seria confirmado pela suposta descoberta de um suposto documento que supostamente Lina afirma ter encontrado. Neste suposto encontro, supostamente, Dilma teria pedido para que Lina “agilizasse”, assim mesmo, entre aspas, as investigações da receita federal sobre a família Sarney.

O vídeo com Lina Vieira desmentindo a fraude do “encontro no dia 9” (2) deixou a Folha com mais um mico na mão, e este é dos grandes, já que a credibilidade do jornal fica dependendo de que o leitor não lembre do que foi publicado há quatro dias. A queda das vendas pode indicar que a aposta na amnésia, em tempos de arquivos digitais facilmente consultáveis, talvez tenha sido alta demais. A "ditabranda" foi um enorme erro de discurso, já assumido pelo jornal. Já a ficha da Dilma, as fotos do dinheiro dos aloprados, o encontro com Lina, o grampo sem áudio, os 35 milhões de infectados pela gripe A e - last but not least - o Picasso do INSS, são erros que vão da incompetência à mentira, passando pela má vontade e a má fé.

Numa democracia, é inaceitável a censura a imprensa, assim como é inaceitável que um jornal ou televisão divulguem provas, obtidas sabe-se lá por que meios, de um inquérito que corre sob segredo de justiça, com o claro objetivo de favorecer uma corrente política. A função da imprensa é fustigar a todos os governos, sempre, e é inaceitável que ela fustigue apenas alguns governos, e só quando isso lhe interessa.

Blog de Jorge Furtado

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